Passaporte de vacina: por que quem tomou a Coronavac talvez não possa viajar para a Europa?
Quarenta e dois milhões de doses da CoronaVac, vacina desenvolvida pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac, foram entregues ao Plano Nacional de Imunização (PNI). Esse número serve para vacinar 21 milhões de pessoas. Porém, mesmo que estejam completamente vacinados, talvez esses brasileiros imunizados pela CoronaVac não possam viajar para países que fazem parte da União Europeia.
Isso porque ganhou a força a ideia de criar “passaportes de vacinas” ou “passaportes de imunização” – alguns deles com restrições de entrada para quem recebeu imunizantes não aprovados pelos órgãos reguladores de cada país.
O InfoMoney explica abaixo o que são esses passaportes e as polêmicas envolvidas na criação dessas autorizações de viagens para vacinados contra covid-19.
Entenda o passaporte de vacina
Assim como um certificado de vacina contra a febre amarela, por exemplo, esse passaporte teria de ser apresentado para permitir a entrada de turistas. Na prática, o passageiro teria que comprovar que estaria vacinado e protegido para poder ser liberado no país destino. As pessoas também poderiam mostrar esse passaporte para frequentar eventos como shows e restaurantes, por exemplo.
Não há definições padrões sobre o formato do documento: se é impresso ou digital, ou se é um carimbo no passaporte ou um aplicativo com diversas informações. No caso da febre amarela, por exemplo, é uma espécie de atestado que é verificado no próprio aeroporto antes mesmo do embarque.
O passaporte de vacina já é adotado em países como Dinamarca e Israel – em ambos os casos disponibilizados por um app. Na América Latina, autoridades uruguaias pretendem finalizar os trâmites para ter um passaporte de vacina pronto até junho de 2021.
Mas não são apenas países que criaram passaportes de vacinas. A Associação Internacional do Transportes Aéreos (Iata) lançou uma aplicativo chamado Iata Travel Pass. O app está sendo testado com aéreas como Emirates e Qatar. Os governos podem verificar a autenticidade de testes e vacinações para covid-19, enquanto os viajantes podem checar os requisitos impostos pelo país de destino. O InfoMoney explicou mais sobre o Iata Travel Pass em outra reportagem.
Coronavac vai ser aceita na Europa?
A Comissão Europeia, instituição que defende os interesses da União Europeia, propôs na última segunda-feira (3) permitir viagens não essenciais de turistas estrangeiros para o bloco.
Mas existem duas condições: os turistas devem ter recebido há pelo menos duas semanas todas as doses necessárias de vacinas contra covid-19; ou devem viver em países que estejam com “boa situação” em relação ao contágio pelo novo coronavírus.
No primeiro caso, a permissão valeria apenas para os imunizantes aprovados no bloco europeu – ou seja, as vacinas da Oxford/AstraZeneca, da Johnson & Johnson, da Moderna e da Pfizer. Brasileiros vacinados com a CoronaVac não poderiam viajar a países da União Europeia, portanto. Embora ainda não esteja definido, provavelmente a comprovação seria feita por meio de um passaporte de vacina ou por um documento similar que comprove a vacinação do indivíduo.
A Agência Europeia de Medicamentos disse na terça-feira (4) que começou a chamada análise contínua da Coronavac, ainda sem resultados divulgados. As análises contínuas são concebidas para acelerar o processo de aprovação, permitindo que pesquisadores apresentem resultados em tempo real antes de os dados finais dos testes estarem disponíveis.
Mesmo se a agência europeia não aprovar a vacina, existe uma alternativa em aberto aos vacinados com a CoronaVac: os 27 países parte da União Europeia podem estender a autorização a pessoas que receberam imunizantes homologados para uso emergencial pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
A entidade deveria decidir ainda nesta semana se aprovava o uso emergencial da CoronaVac. Porém, aprovou nesta sexta-feira (7) apenas outra vacina chinesa contra a covid-19, produzida pela Sinopharm. Segundo Jamil Chade, colunista do portal de notícias UOL, a OMS pediu mais dados sobre a CoronaVac para a Sinovac, e pretende reavaliar a vacina e dar sua decisão “logo.”
Já no caso de turistas que vivam em países com “boa situação” em relação ao contágio pelo novo coronavírus, a Comissão Europeia propôs como condição ter 100 infecções a cada 100 mil habitantes. O limite anterior era de 25 infecções. Segundo o jornal Valor Econômico, o número de novos casos de covid-19 no Brasil era de 190,4 por 100 mil habitantes. As propostas da Comissão Europeia ainda precisam passar por aprovação dos países da União Europeia.
Já os Estados Unidos estão adotando uma posição diferente da europeia. De acordo com a BCC, a Casa Branca afirmou que não criaria um passaporte de vacina federal e que não apoiaria “um sistema que requer que os americanos carreguem uma credencial”.
Victor Hanna, advogado aeronáutico do escritório Demarest, entende que esse tipo de documentação inevitavelmente será requisitado por diversos países. “Comercialmente, esse documento vai permitir uma retomada do turismo de forma mais sólida e segura. Como muitos países da Europa têm o turismo como atividade econômica importante, é bem provável que esse tipo de restrição aconteça”, diz.
Ele explica que é preciso compreender que os países têm soberania na decisão quando se diz respeito às regras sanitárias de entrada e saída de turistas. “É assim como acontece com a febre amarela: há um consenso dos países que exigem o certificado para receberem turistas. Essas restrições são legais. Portanto, importante lembrar que, mesmo se a CoronaVac receber o aval da OMS, os países podem optar por restringir a entrada de vacinados com esse imunizante. Por outro lado, imagino que o aval da OMS seja um grande passo rumo a liberação da entrada da vacina no bloco europeu”, diz.
Críticas ao passaporte de vacina
Especialistas ressaltam que criar passaportes pode levar a um relaxamento de medidas de prevenção, como uso de máscaras e isolamento social. Também ainda não existem estudos sólidos sobre a eficácia das vacinas em não apenas evitar casos graves, mas também infecções, assim como sobre por quanto tempo as pessoas estão protegidas após tomarem as doses indicadas. Ainda, a vacinação contra covid-19 de menores de idade também não está liberada – Pfizer e Moderna iniciaram testes em crianças.
Outra crítica é a abertura de fronteiras apenas para países que estão com vacinação encaminhada, o que pode levar a uma segregação da população e a um aprofundamento da desigualdade mundial. A oportunidade de viagem seria dada apenas aos que vivem em nações com maior poder econômico e com capacidade de negociação com as fabricantes de doses.
Fernando Aith, professor da Faculdade de Saúde Púbica da USP, ressalta que é crucial para um país saber medir suas regras sanitárias, com o objetivo de evitar segregação da população global. “Ninguém escolhe a vacina que vai tomar. É literalmente a que tiver disponível, principalmente no Brasil. E quando o bloco europeu limita a entrada de estrangeiros em quatro vacinas principais, está automaticamente limitando o universo de pessoas que entram em seu território”, afirma.
“Como ficam as pessoas que não tomaram uma das vacinas autorizadas? Esse tipo de medida disfarçada de controle e segurança sanitária vai expor ainda mais as desigualdades entre países ricos e pobres. A CoronaVac está sendo aplicada, de forma geral, em países em desenvolvimento e subdesenvolvidos. Esse tipo de medida pode representar escolhas seletivas a partir da vacina que o indivíduo tomou”, completou o professor.
Hanna pontua que a lógica por trás da medida expõe também a falta de colaboração das autoridades sanitárias ao redor do mundo. “Na prática, o Brasil também poderia impedir qualquer cidadão que tomou Sputnik V [vacina russa], por exemplo, de entrar no país porque a Anvisa não autorizou a vacina. Mas falta alinhamento. Se a Anvisa e o EMA estivessem alinhados, seguindo os mesmos padrões, ficaria muito mais fácil esse tipo de aprovação em localidades diferentes”, avalia.
Existe um movimento internacional, que não é novo, que prega essa convergência regulatória. “Teríamos padrões e exigências sanitárias para todos os países. Assim, a indústria farmacêutica teria que seguir uma ordem de burocracia similar para registrar sua vacina em todos os lugares. Isso facilitaria muito todo o processo de aprovação de vacinas em diferentes territórios”, afirma Aith.
Segundo ele, é papel da OMS assumir o protagonismo nesse caso. “A OMS tem credibilidade para organizar se forma justa para todo mundo. Mas tanto a pandemia quanto o desenvolvimento de imunizantes aconteceram muito rápido. Ainda estamos entendendo possibilidades, e pode levar um certo tempo até que haja uma padronização de requisitos para entrar em diferentes países”, diz o professor da USP.
Mas a própria OMS já se posicionou contra a ideia de segregação da população por meio das vacinas. “A requisição de certificação de vacinação como pré-requisito para viagens internacionais não está justificada, já que a vacinação não está disponível de forma ampla o suficiente e está distribuída de forma desigual ao redor do mundo”, afirmou Michael Ryan, diretor de Emergências da OMS, em março deste ano.
Apesar das discussões sobre o passaporte da vacina, não tem como negar que a preocupação com esse tipo de restrição é genuína. “Naturalmente, os países têm receio de lidarem com mais uma onda de pandemia, com mais mortes e piora da economia. Mas há outras formas de organizar essa entrada, que era o que estava sendo feito até a aceleração da vacinação em alguns lugares do mundo”, diz o professor da USP.
Aith cita quarentenas, testes PCRs negativos e atestados de recuperação de covid-19 como exemplos de medidas que poderiam ser utilizadas para controlar a crise sanitária – mas elas dão mais trabalho. “Restringir a entrada de estrangeiros pela vacina tomada é muito mais simples. É um caminho econômico para as autoridades locais”, complementa.
Fonte: Infomoney.com.br