O italiano que está a caminho de se tornar ‘santo adolescente’ da Igreja Católica

Edison Veiga, de Bled (Eslovênia), para a BBC News Brasil.

Jovem e “normal”. Nas duas imagens – uma fotografia e uma ilustração – que devem constar do livreto tradicionalmente distribuído pelo Vaticano aos participantes de missas de beatificação e canonização, Carlo Acutis aparece sorridente e trajando uma camisa polo.

Na primeira, carrega uma mochila às costas: é uma foto comum, dessas que poderiam ser a de seu perfil nas redes sociais.

Morto em 2006, aos 15 anos, vítima de leucemia, esse italiano de classe média-alta nascido na Inglaterra deve ser reconhecido, em cerimônia marcada para o sábado (10/10), como beato, um passo importante no processo, muitas vezes longo, adotado pelo Vaticano para declarar a santidade de alguém.

Acutis nasceu em Londres porque era lá que seus pais, italianos, estavam trabalhando. Com poucos meses de idade, a família se transferiu para Milão, na Itália.

Desde muito pequeno, o menino passou a se interessar pela Igreja Católica, mesmo que seus pais não fossem praticantes. Ainda criança, passou a se confessar semanalmente e rezar o rosário todos os dias. Aos poucos, seus pais começaram a participar também.

Quanto tinha onze anos, passou a catalogar milagres pelo mundo. Como era apaixonado por computadores, logo criou um site para divulgar essas histórias. Gostava de viajar e pedia para seus pais levá-lo para conhecer os locais onde teriam ocorrido tais milagres. Sua predileção era por Assis, na Úmbria, Itália, terra de São Francisco.

Adolescente, decidiu ajudar os colegas cujos pais estavam se divorciando. Passou a acolhê-los em casa para conversas e orientações.

“Ele tinha sempre um convite para os jovens da escola. Apresentava Cristo de uma maneira gratuita e livre, nunca como imposição. Era sempre um chamado e sua fisionomia estampava a alegria que era o seguimento de Jesus Cristo”, afirma Roberto Luiz.

A doença

Acutis recebeu o diagnóstico de leucemia aguda com serenidade. Decidiu entregar seu sofrimento para Deus.

“Eu ofereço todo o sofrimento que hei de ter pelo Senhor, pelo Papa e pela Igreja”, afirmou. Deixou como desejo ser sepultado em Assis, no que foi atendido. Logo após a sua morte, começou um clamor popular para que ele um dia fosse reconhecido como santo. O Vaticano autorizou a abertura do processo de beatificação em 2013.

Para que seja declarado beato neste sábado, a Igreja reconheceu como milagrosa a cura de um menino de três anos em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Ele sofria de uma doença congênita no pâncreas e sarou após sua família rezar para Acutis, em 2013.

Jeans e terço na mão
O que chamou a atenção de fiéis em todo o mundo ao se depararem com a imagem desse quase-santo em sites e redes sociais nos últimos dias foram a jovialidade e a contemporaneidade como seus restos mortais, preservados em uma tumba na cidade italiana de Assis, foram apresentados.

O jovem foi exposto, de terço na mão, vestindo jeans e um casaco de moletom. Destoante do padrão tradicional dos adereços de altares católicos, portanto.

Conselheiro da Ordem dos Padres Mercedários em Roma, frei Reginaldo Roberto Luiz, que trabalha com processos de canonização no Vaticano, acredita que esse tipo de exibição serve para demonstrar “a face jovial” da Igreja.

“[Quando papa, o hoje santo] João Paulo 2º [1920-2005] falava que precisamos de santos para os tempos atuais, que possam vestir tênis, calça jeans, camiseta e estar no povo”, comenta ele, em conversa com a BBC News Brasil.

Não é um fato inédito a Igreja venerar figuras tão jovens. Considerada desde 1929 a padroeira da juventude, Santa Rosa de Viterbo viveu no século 13 e morreu provavelmente com 17 ou 18 anos. Seu corpo, embalsamado, fica exibido em um jazigo protegido por vidro em santuário na cidade de Viterbo, a 80 quilômetros de Roma.

Rosa ficou conhecida porque, ainda adolescente, tornou-se uma efusiva pregadora do Evangelho pelas ruas.

De certa forma, Acutis realizou o mesmo, contudo, utilizando uma ferramenta do seu tempo, a internet.

“Essa parte soa como inovadora e, por isso, tem se falado que ele pode se tornar o padroeiro da internet”, comenta à BBC News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.

“Faz sentido porque ele será um santo jovem e isso cria uma identidade com os outros jovens. Mas não sei se isso o define. Afinal, de um certo momento para cá, todos os novos santos terão sido pessoas que utilizaram a internet como um dos meios de evangelizar.”

Inocência e santidade
“Ter um menino que morreu aos 15 anos beatificado é um sinal para os fiéis de que para ser santo não há idade. É um sinal sadio para a juventude do nosso tempo”, comenta à reportagem a professora Cristiane Rigolin, membro da comunidade católica Emanuel.

Para o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), um “santo criança tem significado especial para a Igreja”.

“E isso vale tanto para a instituição quanto para os fiéis”, afirma ele à BBC News Brasil. “Em primeiro lugar, é um sinal do poder de Deus. Não importa a condição da pessoa, todos podem se santificar pela ação de Deus. Depois, passa também pela noção de pureza. A criança, até por uma imaturidade psicológica e por experiência de vida, não adquiriu a malícia dos adultos.”

“Assim, santos crianças são normalmente tratados como exemplos de pureza, de falta de maldade. No caso dos jovens, são importantes como modelos de comportamento para aqueles que estão numa fase de consolidação da própria personalidade e dos próprios padrões de conduta”, explica Ribeiro Neto.

“O santo criança ou jovem dá também a ideia de uma personalidade prodigiosa, por ter conseguido tão cedo o que outros demoram uma vida, mas isso não seria tão valorizado pela instituição, para a qual a santidade é sempre uma graça e não apenas um fruto do esforço pessoal.”

Domingues acredita que duas características unem, respectivamente, os santos crianças e os santos jovens. No primeiro caso, a inocência; no segundo, a inquietude.

“Pela pureza e pela ideia de simplicidade e humildade, há a ideia de que uma mensagem [divina] entregue a um adulto não seria tão bem recebida”, pontua ele. “No caso do jovem, há a inquietude, a não conformidade com a realidade em volta deles, aspecto próprio dessa fase da vida. Papa Francisco sempre fala que essa espécie de rebeldia caracteriza o jovem, e esse questionamento da realidade faz parte.”

Especialista em direito canônico e diretor do Instituto San Vincenzo Pallotti, de Roma, padre Denilson Geraldo ressalta à reportagem que a potencial santidade dos mais jovens foi abordada no Sínodo dos Bispos realizado em 2018.

Na Exortação Apostólica publicada após aquele evento, papa Francisco pontuou que o mundo está cheio “de jovens santos, que deram a sua vida por Cristo, muitos deles até ao martírio”. E que tais casos “constituem magníficos reflexos de Cristo jovem, que resplandecem para nos estimular e tirar fora da sonolência”.

“Os jovens são capazes de transformar profundamente o mundo quando se abrem a Cristo. Aqui está a santidade que significa uma renovação espiritual e um força apostólica. Em nossas comunidade existem tantos jovens que vivem a santidade”, comenta Geraldo.

Durante os estágios do processo de canonização, antes de a figura ser declarada venerável, uma comissão elabora um relatório com suas virtudes em vida. Conforme explica Roberto Luiz, com a experiência de quem trabalha com tais procedimentos, em geral o maior peso é para os últimos 15 anos vividos – porque são muitos os casos em que há uma conversão de vida.

“No caso de um venerável adolescente, portanto, há um significado profundo”, analisa ele. “Significa que com tão pouco tempo de vida o indivíduo conseguiu despertar a atenção de outros jovens e de adultos e ser impactante a ponto de que, de forma póstuma, as pessoas irem ao seu túmulo e atribuírem a ele graças alcançadas.”

Rigolin pondera que “a Igreja não tem uma intenção particular em beatificar uma pessoa em função de sua idade”. “A santidade vivida pela pessoa, e que se manifesta, é que é reconhecida pela Igreja”, afirma. “A vivência do evangelho é um chamado para todos, por isso na Igreja se reconheceu e se reconhece santos de todos os gêneros, idades, povos e estados de vida.”

“Para nós, católicos, em especial desde a segunda metade do século 20, claramente porque os meios de comunicação e pesquisa se aceleraram rapidamente, a Igreja pôde realizar com maior rapidez os processos de beatificação e canonização. Isto nos revelou santos dos nossos dias. Não somente padres ou religiosos e religiosas, mas mães e pais de família, leigos, profissionais, jovens. Santos que são um sinal de que a santidade é possível nos nossos dias. Que é possível viver a união a Deus e a prática do Evangelho através da nossa vida ordinária.”

Jovens e santos
Na fila das canonizações há pastas e pastas com biografias de exemplos dessa juventude tramitando no Vaticano. Dentre os brasileiros, há o caso do médico, seminarista e surfista fluminense Guido Vidal França Schäffer (1974-2009), conhecido como “anjo surfista” e “surfista santo”.

Morta por febre paratifoide aos 9 anos, a carioca Odete Vidal Cardoso (1930-1939), também conhecida como Menina Odetinha, também tem sua biografia sendo analisada pela cúpula da Igreja. A fama de milagreira atrai fiéis. Quando seu processo de beatificação foi oficialmente aberto, em 2013, seus restos mortais foram exumados do Cemitério São João Batista, no Rio, e transferidos para uma urna na Basílica da Imaculada Conceição, na mesma cidade.

Outro que está nessa fila é Nelsinho, como é conhecido o menino Nelson Santana (1955-1964). O garoto morreu depois de complicações decorrentes de uma queda de árvore e, desde então, atrai devoção popular na região de sua cidade natal, Ibitinga, no interior paulista.

“Tem grande fama de santidade e o processo dele está caminhando. Acredito que ele também um dia chegará aos altares, as pessoas têm muita devoção a ele”, diz Roberto Luiz.

Beatificado em 2007, também pode se tornar santo o coroinha gaúcho Adílio Da Ronch (1908-1924), assassinado aos 15 anos. Outra oficialmente beata há 13 anos é a menina catarinense Albertina Berkenbrock (1919-1931), morta aos 12 anos depois de uma tentativa de estupro.

Fonte: UOL