Médico psiquiatra desmistifica estigmas da doença do alcoolismo

Por Wilma Anjos
O médico Psiquiatra Arthur Guerra, presidente executivo do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA), conversou com o jornal Correio de Sergipe (CS) a respeito do consumo abusivo de bebida alcoólica e suas consequências à saúde, além de comentar a publicação ‘Álcool e a Saúde dos Brasileiros: Panorama 2021’ – conteúdo difundido mês passado, com dados atualizados sobre o uso de álcool por brasileiros. Pela publicação, Sergipe, pelo segundo ano consecutivo, é o estado que lidera o ranking nacional de maiores taxas de mortes atribuíveis ao álcool. Na entrevista, Guerra orienta como identificar um indivíduo propenso a fazer uso abusivo de álcool, como ajuda-lo e opina sobre por que no país a doença do alcoolismo ainda é tão pouco debatida, embora seus efeitos estejam tão presentes na vida das pessoas. Acompanhe:
Correio de Sergipe: Alcoolismo é doença?
Arthur Guerra: A dependência de álcool, conhecida popularmente como alcoolismo, é uma doença crônica (ou seja, de longa duração) e multifatorial, pois diversos fatores contribuem para o seu desenvolvimento, incluindo a quantidade e frequência de uso do álcool, a condição de saúde do indivíduo, fatores genéticos, psicossociais e ambientais; mas tem tratamento.
CS: Fatores genéticos significa que ela é hereditária?
AG: O alcoolismo possui uma importante carga hereditária, trazendo maior risco de adquirir dependência de álcool para aqueles que possuem alguém na família com o mesmo quadro. Mas, este é apenas um fator de muitos. A idade de experimentação, por exemplo, é outra causa. Estudos apontam que a experimentação antes dos 15 anos aumenta em quatro vezes o risco de desenvolver dependência.
CS: Existe faixa etária que consome mais álcool?
AG: Segundo dados do IBGE, quem mais consome álcool no Brasil, tanto de forma abusiva quanto não abusiva, são os jovens, isto é, a faixa etária de 18 a 34 anos.
CS: Quais os danos que o álcool traz à saúde?
AG: Para além da dependência do álcool, o consumo da bebida pode causar doenças no fígado, como a hepatite alcoólica, problemas gastrointestinais, pancreatite e vários outros danos aos órgãos. Além disso, o consumo abusivo de álcool deixa a pessoa com maior risco de engajar em comportamentos de risco, como sexo desprotegido e o dirigir alcoolizado.
Por isso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que cerca de 5% dos óbitos no mundo estão relacionados ao consumo de álcool. No Brasil, segundo a publicação ‘Álcool e a Saúde dos Brasileiros: Panorama 2021’, o uso nocivo impacta a vida de mais de 425 mil brasileiros anualmente entre hospitalizações e óbitos.
CS: Como identificar alguém que tem problemas com bebida alcoólica?
AG: Existem alguns sinais associados a problemas com o álcool, sendo os cinco principais: 1) forte desejo de beber; 2) dificuldade de parar de beber; 3) priorizar a bebida, deixando de lado outras atividades e obrigações; 4) continuar a beber, apesar das consequências negativas; e 5) abstinência física. Também é possível que ocorra o consumo de álcool para aliviar ou evitar esses sintomas de abstinência. Se esses sinais aparecerem, é importante buscar tratamento.
CS: Que atitude tomar se um parente ou amigo está bebendo compulsivamente?
AG: Família e amigos desempenham um papel importante no reconhecimento dos problemas por uso de álcool e, em especial, podem motivá-lo a iniciar e permanecer em tratamento. O primeiro passo é fazer uma aproximação afetuosa e amiga, com respeito e sem acusá-lo ou culpá-lo. De maneira geral, escolha o momento em que a pessoa esteja sóbria e que ambos estejam calmos e em local privativo, diga que está preocupado e que gostaria de auxiliá-lo a procurar ajuda, fundamentando com exemplos de situações negativas que ocorreram com ele em função do uso de álcool; e, como a motivação para mudança oscila constantemente, esteja sempre disponível, mantendo uma relação de troca, dê suporte e se informe sobre as opções de tratamento.
CS: É possível parar de beber ou o consumidor de álcool está condenado?
AG: É possível e a pessoa não está condenada. Existe tratamento e, ainda que a recuperação não seja fácil e ocorram percalços, os alcoolistas que procuram ajuda adequada estão no caminho certo para recuperar uma vida autônoma e com mais saúde.
Ao reconhecer que o consumo de álcool está interferindo negativamente na saúde física, na rotina ou nas relações pessoais, é hora de buscar ajuda com profissionais de saúde, como um clínico geral ou psiquiatra, que farão um diagnóstico detalhado e irão propor o tratamento mais adequado. Vale informar que há opções de apoio e tratamentos gratuitos no Brasil, como os Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPS-AD) e a irmandade Alcoólicos Anônimos (A.A.).
CS: No Brasil existem políticas públicas para coibir o consumo?
AG: Temos algumas políticas que tentam dirimir os danos do consumo de álcool, como a Lei Seca, que penaliza aqueles que dirigem alcoolizados. O Brasil é um vanguardista nesta área, e um exemplo mundial, de acordo com a OMS.
Outra lei importante é a que proíbe a venda de álcool para menores de 18 anos. Muito embora sua implementação ainda seja falha em alguns lugares, ela representa um avanço significativo.
Existem, contudo, alguns desafios que precisamos encarar. Um dos principais é o consumo nocivo de álcool no Brasil, que se manteve estável nos últimos anos, na contramão de uma desejável redução de 10%, conforme a meta estabelecida pela OMS, como apontou o relatório ‘Álcool e a Saúde dos Brasileiros: Panorama 2021’.
CS: E por que ainda é tabu falar abertamente sobre a doença do alcoolismo no Brasil?
AG: Realmente, ainda temos um forte estigma social envolvendo o alcoolismo e problemas com o consumo de álcool em geral. Equivocadamente, é associado aos alcoolistas a falsa percepção de que tais pessoas têm uma falha de caráter e falta a elas força de vontade para cessar o consumo de bebidas. Tudo isso leva a um sentimento de culpa e vergonha, o que dificulta tanto o falar abertamente quanto a busca por tratamento adequado. Falar mais sobre o assunto, ampliando o diálogo e a conscientização da população a respeito do tema, é uma medida importante para começar a mudar essa realidade.
CS: Que recomendação o senhor dá para uma pessoa não desenvolver o alcoolismo?
AG: Uma opção é a abstenção, ou seja, não beber. Inclusive, vale reforçar que em algumas situações o uso de álcool é inaceitável, portanto deve ser zero, como no caso de menores de 18 anos, gestantes e motoristas. Para quem está fora dessas condições e decide beber, o recomendável é consumir dentro de um nível de baixo risco. Isso significa não exceder uma dose diária de álcool no caso das mulheres, e duas, no caso dos homens. Lembrando que uma dose padrão de álcool corresponde a 350 mL (uma lata) de cerveja, 150 mL (uma taça) de vinho ou 45 mL (shot) de destilado.