Dá para se livrar das dívidas comprometendo até 30% da renda
Por Wilma Anjos
Recém-sancionada, a Lei do Superendividamento, como ficou conhecida a Lei 14.181/21, surge num contexto de alta nos juros, aumento na inflação e desemprego, embora não tenha sido pensada exatamente para ajudar a solucionar essas questões. O objetivo, segundo o advogado especialista em Direito Bancário, Adernoel Almeida, é possibilitar a negociação coletiva das dívidas, além de disciplinar a forma que as instituições dão crédito. Uma das vantagens da Lei é assegurar o mínimo existencial. Os tribunais têm entendido como mínimo existencial algo em torno de 70% da renda da pessoa em débito. Isso quer dizer que o valor usado para pagar as dívidas não deve ultrapassar 30% da renda do consumidor. Além disso, o prazo de pagamento pode se estender até cinco. Confira mais detalhes:
Por Wilma Anjos
Correio de Sergipe: O que mudou na renegociação de dívidas com a promulgação da Lei 14.181/21, a Lei do Superendividamento?
Adernoel Almeida: A Lei 14.181/21 alterou o Código de Defesa do Consumidor, possibilitando que o devedor, antes obrigado a ingressar com várias ações em face de todas as instituições financeiras com as quais mantinha relação, faça uma negociação em bloco, com todos os credores, de uma só vez. Essa talvez seja uma das partes mais celebradas da Lei do Superendividamento. A partir de agora, o consumidor em débito pode renegociar todos os valores ao mesmo tempo. Não será necessário o ingresso de uma ação revisional em face de cada banco com o qual o consumidor possui dívida inadimplida. Trata-se da repactuação das dívidas, procedimento amigável que conta com a presença de todos os credores. Com a negociação em bloco, o devedor consegue usar uma única fonte de renda para liquidar as contas em aberto. É mais ou menos o que ocorre com uma empresa que entra em recuperação, como uma espécie de recuperação judicial da pessoa física.
CS: Essa renegociação vale para toda e qualquer tipo de dívida?
AA: Não, a Lei beneficia apenas pessoas físicas, e é importante dizer que a renegociação vale apenas para dívidas de consumo – contas de água e luz, carnês de lojas ou empréstimos de instituições financeiras, entre outros. Portanto, a nova Lei do Superendividamento não se aplica a pagamento de impostos, pensão alimentícia, crédito habitacional ou serviços de luxo, assim como também não beneficia os contratos de crédito rural, sistema financeiro da habitação e empréstimos com garantia real.
CS: Uma pessoa com dívida de R$ 60 mil, por exemplo, de um empréstimo no banco, consegue fazer essa renegociação?
AA: Sim, não importa o volume da dívida ou em quantas instituições financeiras, desde que seja uma relação de consumo, e os empréstimos bancários se enquadram como tal.
CS: Imagino que superdívidas dispõem também de superprazos para serem honradas.
AA: O Banco Central do Brasil fiscaliza todas as operações de crédito realizadas, de forma que há registro do endividamento de cada consumidor disponível a todas as instituições financeiras. Dessa forma, ao conceder crédito, o banco tem conhecimento prévio do risco de crédito, presumindo-se que, se o faz, leva em consideração a comprovação de renda daquele que contrai a dívida. O que a Lei possibilita, é que essa fonte de renda do devedor garanta ao menos o mínimo existencial, que os nossos tribunais têm entendido em decisões recentes como algo em torno de 65% a 70% dos rendimentos mensais, possibilitando o pagamento das dividas em geral, com 30% a 35% de tais rendimentos, o que deverá ocorrer no prazo de até 60 meses, conforme dispõe agora, com a alteração inserida pela Lei do Superendividamento, o artigo 104-A* do CDC.
CS: Como funcionarão esses? Em audiência de conciliação?
AA: O artigo 104-A do CDC dispõe que o consumidor requererá a repactuação através de ação própria, onde o juiz poderá instaurar processo de repactuação das dívidas, realizando audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado, com a presença de todos os credores.
CS: São quantos superendividados em Sergipe? Onde consulta essa dívida?
AA: Cerca de 77,5% da população brasileira está endividada, segundo pesquisa feita em março pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), maior índice dos últimos 12 anos. Uma pessoa é considerada apenas endividada quando tem um compromisso financeiro, mas ainda que com cerca dificuldade, paga em dia. Já o conceito de superendividamento foi incluído no ano passado no Código de Defesa do Consumidor, a partir da Lei 14.181. Ele é definido como a impossibilidade manifesta de uma pessoa de boa-fé pagar a totalidade de suas dívidas de consumo sem comprometer seu mínimo existencial, eis que ultrapassado o limiar de sua possibilidade de pagamento sem afetar a sua própria sobrevivência, surgindo a inadimplência, representada pelas dívidas ou contas em atraso. O número de famílias brasileiras nesta condição também alcançou em março deste ano o maior patamar em 12 anos, atingindo cerca de 28% do total de famílias.
Em Sergipe, embora o endividamento das famílias tenha alcançado em março deste ano o mesmo percentual do cenário brasileiro global, totalizando 156.304 famílias na condição de endividamento, no que concerne às famílias sergipanas que se encontram em condição de dificuldades para pagamento das contas, ou seja, com contas atrasadas, este patamar se mostrou inferior em 4% à média nacional, atingindo 24%, cerca de 560 mil sergipanos.
Para acessar o valor exato de suas dívidas, o consumidor deverá se dirigir às instituições credoras e solicitar o contrato, se celebrado, bem como o extrato de evolução da dívida, podendo ainda consultar a existência de empréstimos e financiamentos superiores a R$200,00, através do acesso ao sistema Registrato, do Banco Central do Brasil, utilizando a sua conta Gov.br.
CS: Uma das vantagens da Lei é a prevenção de práticas abusivas de oferta de crédito. O que isso significa?
AA: Esse ponto tem o objetivo de proteger os grupos mais vulneráveis da sociedade, como idosos e analfabetos. Os contratos mal elaborados pelas instituições financeiras, sem a transparência necessária à compreensão do homem médio acerca de tudo o que está pagando, pode levar a instituição a ser obrigada a abrir mão de todos os encargos cobrados, sobrando-lhe somente o mero capital emprestado.
CS: Na opinião do senhor, como envolver consumidor, empresas e órgãos governamentais no processo de adesão à Lei para que ela se efetive?
AA: A Lei acrescenta ao CDC o artigo 104-C, que dispõe sobre a possibilidade de criação de convênios específicos para essa finalidade, entretanto, ainda pendente de regulamentação. Embora a passos lentos, eis que em vigor a “nova” Lei desde 01/07/2021, os caminhos para a conciliação e a realização de convênios com instituições ligadas ao direito do consumidor para auxiliar endividados a renegociar débitos têm sido objeto de discussão pelo grupo de trabalho dedicado ao tema do superendividamento criado pelo Conselho Nacional de Justiça. Até que tais convênios sejam celebrados, o consumidor comprometido com dívidas que não ultrapassem 40 salários mínimos, poderá, mesmo sem advogado, se valer do juizado especial, apresentando diretamente o pedido de abertura de processo de repactuação de dívidas. Contudo, superando 40 salários mínimos, o consumidor deverá, necessariamente, constituir um advogado para tal intento.
CS: Existe uma lacuna na definição do conceito de mínimo existencial. Essa imperfeição não traz insegurança jurídica?
AA: A figura do mínimo existencial já existe desde a Constituição Federal de 1988, inserido no princípio da dignidade da pessoa humana, que assegura os rendimentos mínimos destinados aos gastos com a subsistência digna do cidadão e de sua família, que lhe permitam prover necessidades vitais e despesas cotidianas, em especial com alimentação, habitação, vestuário, saúde e higiene.
De fato, a ausência de regulamentação traz insegurança jurídica ao mercado de fornecimento de crédito, razão pela qual o Conselho Nacional de Justiça, por meio da Portaria 55/2022, instituiu um grupo de trabalho que debaterá questões relacionados ao tratamento do consumidor superendividado.
Até lá, os nossos tribunais têm entendido pela fixação em percentuais sobre a renda de cada devedor, caso a caso, assim como já o fazem no que concerne à penhora de verbas salariais em processos de execução, limitando a 30% da mesma, reconhecendo como mínimo existencial 70% dos rendimentos mensais, possibilitando o comprometimento de 30% para o pagamento das dívidas, havendo casos esparsos em que chega ao percentual de 35%, a exemplo de recentíssima decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, datada de 28/03/2022.
CS: É desafiador estipular esse valor num país de contrastes como o Brasil?
AA: O mínimo existencial varia caso a caso, levando em consideração a região, número de pessoas na família, o padrão de vida do devedor antes de tal condição, dentre outros fatores, de sorte que entendo que tal referência não poderá ser estabelecida em moeda, mas em percentual sobre o valor dos rendimentos do devedor, como sabiamente já vem adotando as nossas Cortes de Justiça.
CS: O legislador pensou no atual momento da economia, com taxa de juros crescente, desemprego e inflação em alta, para criar a Lei?
AA: Para responder a esta questão é necessário entender que a relação entre o PIB e a inadimplência é uma via de mão dupla. Se por um lado os índices de inadimplência são influenciados pelo desempenho da economia, este também é imensamente afetado pela inadimplência, em razão da saída dos consumidores nesta condição do mercado, deixando de gerar renda, e até mesmo aumentando o desemprego. Embora a Lei seja recente, a preocupação do legislador não remete ao cenário atual, somente, tanto que a ideia teve seu início em meados de 2010, quando a Comissão de Juristas de Atualização do Código de Defesa do Consumidor percebeu a necessidade de discussão do tema, surgindo em 2012, o Projeto de Lei nº 283/2012, de autoria do senador José Sarney, tendo como principal objetivo disciplinar a concessão de crédito e possibilitar a negociação coletiva de débitos com os credores, abrindo a possibilidade de conciliação coletiva entre o devedor pessoa física e seus credores. Veja que não se trata apenas de disciplinar os gastos do devedor, pois a lei visa também disciplinar a concessão do crédito, fiscalizando a atitude das instituições financeiras, evitando que o crédito seja concedido de forma irresponsável, induzindo o consumidor a achar que pode pagar o montante tomado. Penso, portanto, que o intuito do legislador foi de transformar em virtuoso o outrora círculo vicioso, obrigando as instituições financeiras a educar o tomador de crédito quando da assinatura dos seus contratos de empréstimos, informando claramente todas as condições contratuais, visando a concessão de crédito responsável, de forma a manter no mercado o consumidor outrora inadimplente, hoje ciente da sua condição financeira e capacidade de endividamento.
CS: Pelo que diz, o superendividamento é reflexo da econômicos de um país.
AA: Há correlação entre o PIB e a inadimplência, sim. Entretanto, o próprio sistema capitalista tem facilitado a concessão desmedida de crédito, fomentando a inadimplência, sendo este o causador do superendividamento.
As instituições financeiras concedem crédito de forma irresponsável, não auxiliando o consumidor, muitas vezes idosos ou sem conhecimento técnico para compreender finanças, a entender a sua capacidade de pagamento sem comprometimento de seu próprio sustento. Por outro lado, campanhas publicitárias sem a completude das informações impelem o consumidor a comprar o que não se precisa com o dinheiro que não tem, comprometendo toda a sua renda familiar. Assim, ao agravarem a situação de endividamento, procuram por soluções aparentemente milagrosas apresentadas pelos bancos e cartões de crédito, apenas aumentando as parcelas e o montante das dívidas, ensejando o superendividamento. Por tal razão é que a Lei não visa apenas conceder vantagem descabida ao indivíduo inadimplente, mas também punir as instituições financeiras quando houver irresponsabilidade na concessão de crédito desmedido, dando caráter educativo a ambas as partes, ao conceder e ao tomar o crédito.
CS: Pode falar sobre a transparência do contrato?
AA: Ao oferecer crédito, a instituição financeira deverá prestar ao consumidor informações claras sobre todos os custos do produto ou serviço oferecido para que compreenda em sua totalidade o que está adquirindo. Siglas ininteligíveis devem ser substituídas por informações de fácil entendimento ao homem médio, evitando, por exemplo, que este entenda estar pagando uma taxa de juros X, e ao multiplicar a taxa mensal, perceba que algum dado implícito o fez contratar a uma taxa de duas vezes X. Como forma de punição, a instituição financeira poderá vir a perder toda a remuneração a que faria jus, leia-se juros, conforme se observa do parágrafo único do artigo 54-D do CDC, acrescido pela nova Lei.
CS: Para encerrar, como prevenir esse ciclo vicioso de chegar ao limite de não conseguir arcar com pagamentos?
AA: A Lei do Superendividamento é um grande passo para prevenir a inadimplência, na medida em que exige das instituições financeiras maior clareza nas informações prestadas ao consumidor, quando da concessão de crédito, bem como as proíbe de pressionar a clientela, especialmente idosos, analfabetos, doentes ou pessoas em estado de vulnerabilidade, a exemplo do conhecido assédio através de ligações telefônicas ofertando crédito consignado a aposentados e pensionistas. Por outro lado, o próprio pedido judicial de repactuação também doutrina o consumidor, na medida em que este se obriga a arcar com o pagamento mensal em Juízo, do montante disponibilizado para a quitação das suas dívidas, comprometendo-se ainda a não mais inadimplir.
Aos que chegaram à condição de superendividado, orienta-se: a eliminação do desperdício, cortando-se as despesas não essenciais; que antes de planejar a viagem de final de ano utilizando o 13o salário, observe que não há dívidas vencidas que podem ser pagas com esta renda extra; que não ignore as suas dívidas, mas procure trocá-las por outras mais vantajosas, negociadas a juros menores; que procure vender bens que geram despesas mensais e não justifiquem a sua manutenção quando existirem dívidas a serem quitadas, a exemplo de um veículo, que pode ser vendido no período de superendividamento e readquirido quando tal situação passar; e, por fim, que adquira o hábito de comprar à vista, ainda que tenha que esperar um pouco mais para obter aquele produto que tanto encheu os olhos.