Bicentenário de Fiódor Dostoiévski: conheça um dos maiores escritores do mundo

Há mais alguém fazendo 200 anos por estes dias, além do Brasil como nação independente. É o caso do cavalheiro moscovita Фёдор Михайлович Достоевский. O leitor há de desculpar cá este plumitivo por tascar o cirílico assim, às cegas. Ocorre que o nome desse sujeito já foi grafado de mil e uma maneiras. Fiódor Dostoiévski. Fyodor Dostoevsky. Fyódor Dostoyévskiy. Fiodor Dostojevskij. Fëdor Dostoevskij. Fjodor Dostojewski. Enfim. Nascido a 11 de novembro de 1821, nosso dileto Dostô passa hoje a bicentenário.

Como todo imortal, passa bem, atual como nunca. Tido como um dos maiores escritores da história, quando não o maior, o graúdo russo, ao imprimir forte carga filosófica e profundas questões psicológicas em sua literatura, é hoje visto como um dos maiores investigadores da mente humana em nossa história cultural. E ainda como pai do existencialismo e influenciador da psicanálise, da teologia dialética e de diversas correntes estéticas, do realismo ao surrealismo. Crânios de diversos tempos, meios e contextos louvaram sua obra, de Friedrich Nietzsche ao Papa Francisco. James Joyce a Sigmund Freud. Virginia Woolf a Akira Kurosawa. Jean-Paul Sartre a Albert Einstein.

Já dizia crítico brasileiro Otto Maria Carpeaux: “Dostoiévski é, se não o maior, decerto o mais poderoso escritor do século XIX; ou do século XX, pois a sua obra constitui o marco entre dois séculos da literatura”. E arrematava, num sentido mais estritamente literário: “tudo o que é pré-dostoievskiano é pré-histórico; ninguém escapa à sua influência subjugadora, nem sequer os mais contrários”. Que o diga Vladimir Nabokov, o do contra. Se alienígenas invadissem a Terra hoje e nos forçassem a apresentar uma única obra literária, nossa maior, para justificar nossa total aniquilação como eventual tolice, não seriam poucos os caciques da ONU que votariam em Crime e castigo, ou em Os irmãos Karamázov. Esse era Dostoiévski. Que ainda por cima era a cara do finado ator tupiniquim José Wilker.

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Não só escritor, mas articulista, filósofo e tradutor, Fiódor Dostoiévski começou na engenharia, sua área de formação acadêmica, pelo Instituto Nikolayev de Engenharia Militar, como no século XIX se chamava a Universidade Técnica de Engenharia Militar de São Petersburgo. É que, nascido em uma família de origens relativamente nobres, mas decadente e financeiramente frágil, seu pai era médico militar, profissão então pouco valorizada. Ainda assim, os Dostoiévski tinham servos: dizem mesmo que foram eles os assassinos do pai de Fiódor e de seus outros seis irmãos. Seja como for, tragédias à parte, além da educação religiosa cristã ortodoxa dispensada a ele e a seus irmãos, o futuro escriba sempre fora estimulado a estudar literatura e ciências humanas, em casa. Na academia de São Petersburgo, fora as disciplinas essenciais de seu curso, o jovem teve a grata surpresa de se deparar com forte currículo literário: mesmo cursando engenharia foi educado em Friedrich Schiller, Honoré de Balzac, Victor Hugo, George Sand, Eugène Sue, entre outros medalhões, em geral franceses. Aleksandr Pushkin, Ann Radcliffe, Nikolai Gogol, Edgar Allan Poe, Santo Agostinho, George Byron, Miguel de Cervantes e Mikhail Bakunin eram outras de suas paixões no mundo letrado.

Gente Pobre, primeiro romance publicado de Dostô, escrito entre 1844 e 1845, alcançou enorme destaque, quando veiculado no Almanaque de Petersburgo em janeiro de 1846. Enorme mesmo. O escriba tinha então apenas 24 anos; apenas um ano antes de começar a escrever a obra havia concluído sua graduação em engenharia. O sucesso de sua estreia se deu, também, por influência de Vissarión Belínski, o mais parrudo crítico literário do Império Russo a meados do século XIX, grande entusiasta do movimento realista na Europa de então. O ilustre machucho gamou nos primeiros escritos do jovem talento moscovita, apontando-o como a grande revelação das letras russas naquele momento, ou melhor, simplesmente como um novo Gogol. Entretanto, a vida de Dostoiévski foi, digamos, um tanto dostoievksquiana, cheia de altos e baixos em guinadas bruscas: naquele mesmo ano de 1846 a recepção de seu segundo livro, O duplo, foi a pior possível. Suficiente para que Belínski não mais o reconhecesse como seu protegido. Dostô tinha se tornado um pouco afetado com o êxito de seu début, atraindo a ira e a inveja de muitos nos círculos letrados, que agora iam à forra. O mais curioso (para não dizer surreal) é que toda essa ascensão e queda acontecera em apenas quinze dias: Gente Pobre saiu em 15 de janeiro de 1846, e O duplo no dia 30 do mesmo mês. Daniel Kalder, escrevendo para o blog literário do jornal inglês The Guardian, em 24 de setembro de 2010, cismou: “Agora isso tem que ser algum tipo de recorde”.

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Depois do fracasso de O Duplo, Dostoiévski se dedicou a narrativas mais curtas, contos, em especial, ante frias recepções da crítica. Publicou a sucinta novela Noites brancas, em 1848, ocasião em que mais se aproximara do romantismo, num momento em que a poeira da negatividade a seu respeito não começara a baixar. Naqueles dias, aliás, outros feitos seus chamariam mais a atenção. O lado politicamente engajado de Dostô despontava. Definir suas posições políticas sempre foi tarefa difícil, tendo o escritor já sido tratado tanto como socialista como quanto conservador cristão – rótulos que, embora em determinados contextos possam fazer sentido, certamente empobrecem a complexidade de determinados perfis. Seja como for, em trânsito no meio intelectual russo, e preocupado com os rumos que as autoridades imperiais imprimiam à Rússia de seu tempo, Dostoiévski passou a integrar o chamado Círculo Petrashevski, ao fim dos anos 1840, que depois originara o Círculo Palm-Durov (título que levantava menos suspeitas). Os grupos, contendo muitos intelectuais socialistas revolucionários, eram liderados por Mikhail Petrashevski, que tinha seus escritos colocados na clandestinidade no país, discípulo que era de Charles Fourier, socialista utópico francês e pai do cooperativismo. Embora os Círculos não tivessem programas definidos, sua organização se dava em torno do estudo de filosofia ocidental (Hegel, em particular) e de literatura. Tudo dentro de oposição ferrenha ao atrasado e cruel despotismo do czar Nicolau I.

Num episódio para lá de narrado em suas biografias, Dostoiévski foi preso na madrugada de 23 de abril de 1849, por um crime e tanto: conspirar contra o czar. A repressão estatal, na ocasião, andava redobrada. Nicolau temia os levantes liberais europeus hoje identificados como Revoluções de 1848, ou Primavera dos Povos. O Círculo Petrashevski, que contava com a participação de Dostoiévski, havia sido desbaratinado no início de 1849, acusado de subversão revolucionária, com 28 de seus membros acabando presos. Dostô, apesar de nunca ter acreditado no republicanismo para a Rússia, foi identificado pela chancelaria imperial como um dos mais incendiários do movimento, e teria um destino certo, ao fim das investigações. Primeiro passou um tempo na Fortaleza de São Pedro e São Paulo, em São Petersburgo, enquanto aguardava julgamento – que viria sob leis militares. Mas, enquanto criava mofo na jaula, encontrou meios de trabalhar em notas para diversas de suas obras. Boa parte desse esforço foi em vão, com a perda dos manuscritos, mas houve uma exceção: sua curta novela O pequeno heroi, devidamente publicada mais tarde.

Os divinos anjos da literatura e do pensamento devem ter intercedido por Dostoiévski, quando sua condenação saiu, a 16 de novembro de 1849. Uma pena de morte por fuzilamento, junto a outros 14 acusados. Somos eternamente gratos aos anjos, mas também a uma série de recursos impetrados, que fizeram com que Nicolau I perdoasse parte dos condenados. Decisão magnânima, de um clemente imperador? Não exatamente. A anistia foi de fato boa para os amantes das letras, já que o autor ainda não havia escrito suas principais obras. Mas, para ele, Dostoiévski, representou uma longa penúria. Ao invés de uma morte rápida, o agitador moscovita foi despachado para uma katorga, que era, basicamente, uma versão imperial dos gulags soviéticos de anos mais tarde. O momento dramático – dostoievskiano, sem dúvida – em que o destino do escritor foi selado permanece vívido na cabeça de qualquer um que já o tenha lido. No campo de fuzilamento, Dostoiévski estava no segundo grupo de três condenados a ser alvejado, depois de Mombelli, Grigoriev e do líder Petrashevski. Quando o primeiro trio já se encontrava amarrado nos postes, aparentemente já trajando capuzes, apenas aguardando a ordem final, o escritor, certo de seu fim, disse para o revolucionário ao seu lado: “Nós estaremos com Cristo”. “Um pouco de poeira”, ouviu como resposta. E foi aí que chegou a ordem de comutação da pena. No último segundo do último minuto da última hora. Expedida dias antes pelo czar, no entanto. É que o próprio havia ordenado que o falso processo de execução fosse levado ao limite.

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Na prisão siberiana de Tobolsk, Dostoiévski ficou, segundo a tradição penal russa, cerca de quatro anos em regime de trabalho forçado. Chegando lá, talvez com alguns fios de cabelo a menos por conta do susto que tomara em São Petersburgo, só podia ler a Bíblia. Sorte sua que esposas de antigos participantes da insurreição de 14 de dezembro de 1825, quando o autor tinha apenas quatro anos de idade, lhe deram um exemplar. Muitos dezembristas ainda estavam presos por lá, com suas fiéis companheiras espontaneamente instaladas ali, para o que desse e viesse. De Tobolsk, o engajado autor foi deslocado para outra prisão, propositalmente mantida sob péssimas condições, em Omsk, centro administrativo da Sibéria. Foi lá, em estresse, que sofreu seu primeiro ataque de epilepsia, condição que o acompanhou até a morte; inclusive em seus escritos, fazendo-se epilépticos diversos de seus personagens. No mais, fora o trabalho forçado e as privações do cárcere, em si, Dostoiévski ficou chocado com as diferenças de classe dentro da prisão, que existiam, só que de cabeça para baixo: detentos das classes operária e camponesa faziam os intelectuais e bem-nascidos de gato e sapato. Se se enturmar em qualquer penitenciária já é difícil para qualquer preso, em qualquer lugar e contexto, imagine o leitor num xadrez siberiano imperial do século XIX. Dostô sentiu isso na pele. Chegou junto a um protesto por melhor alimentação e foi rechaçado pelos próprios cativos, já que os trolladores do xilindró sabiam que ele tinha condições de adquirir ração diferenciada. Melhor manter um low profile. Gourmetizações e sofrimentos à parte, menos mal que lá nos calabouços de Omsk, por incrível que pareça, era possível ler outras coisas que não a Bíblia, ainda que por baixo dos panos.

Quanto à experiência no cárcere, escritor que era, só restava a Dostô traçar linhas a respeito: além de trocar inúmeras cartas com familiares, foi de Omsk que concebeu suas um tanto biográficas Recordações da casa dos mortos, publicadas na década de 1860. Havia sido liberado em fevereiro de 1854, com a pena ainda correndo: teria que realizar serviço militar por tempo indeterminado. Foi assim que integrou por quatro anos o Sétimo Batalhão do Corpo Militar da Sibéria, servindo em seguida na fortaleza de Semipalatinsk, já mais ao sul, mas ainda em paisagem inóspita, no Cazaquistão. Menos mal que havia uma flor de lótus em meio a esse lamaçal: Dostoiévski estava apaixonado. Se correspondia com Maria Dmitriévna, que era tuberculosa, casada e mãe de um menino, o jovem Pável Issáiev.

De aperto em aperto, a reviravolta afinal chegava. Em 1855 Nicolau I já era, com seu filho mais velho assumindo o império como Alexandre II. Mesmo destino que o antigo monarca tivera o marido de Maria Dmitriévna, que enviuvara também naquele ano, felizmente (e que Deus guarde o defunto). Apesar de um baita ataque epilético por parte do noivo em plena noite de núpcias e de certa aventura da noiva com um terceiro galanteador, a partir de 7 de fevereiro de 1857 a última enfim podia ser considerada oficialmente a Sra. Dostô, com o novo marido virando, inclusive, tutor de seu filho. Em maio daquele ano, aliás, o militar por obrigação teve seus direitos civis restabelecidos, incluindo o de publicação. No início de 1858, com o diagnóstico de epilepsia, Dostoiévski conseguiu se aposentar como milico, sob a condição de não residir nem em São Petersburgo, nem em Moscou. Peralta, escolheu estabelecer-se em Tver, antiga cidade medieval a meio caminho entre as duas vistosas urbes vetadas. Mas já em 1859 deu um jeitinho de se mudar com a família para São Petersburgo.

Outra mudança se deu para o autor nessa época de retomada pós-prisão, nos campos político, existencial e espiritual: o antigo indignado com o autoritarismo que passou a ter medo e repulsa dos broncos desfavorecidos da sociedade russa na cadeia se viu, de repente, tomado pelo amor cristão, pela aceitação e pela fé no próximo. Deu-se, de fato, aquilo que Dostoiévski considerou sua verdadeira “conversão” (apesar de sempre ter sido, oficialmente, um cristão ortodoxo). A sociedade russa também estava em plena mudança: sob Alexandre II deu-se a Reforma Emancipadora de 19 de fevereiro de 1861, de cunho liberal, que procurava acabar com o sistema de servidão no Império Russo (o que ocorreu ao menos no papel, diga-se).

Apesar dos bons prognósticos, a retomada da carreira de Dostoiévski não foi fácil: o autor estava então sem contatos e defasado quanto à produção cultural e jornalística de seu meio. Alguma prosa foi escrita e publicada, sem grande sucesso. Em 1861, entretanto, o prodígio letrado moscovita estaria de volta nos trilhos. As Recordações da casa dos mortos, publicadas em folhetim na revista Mundo Russo entre 1860 e 1861 renderam ao autor um status positivo junto à crítica e ao público letrado imperial, comparável ao obtido com o lançamento de Gente Pobre. Ninguém menos que Liev Tolstói a considerou uma das maiores obras da literatura moderna. Em seguida, numa jogada de gênio, surgiu Tempo, revista literária e política lançada por Dostoiévski junto com seu irmão, Mikhail. Eslavófila e ocidentalista, ao sabor de estéticas nacionalistas de sua época e contexto, a publicação trouxe a lume diversos trabalhos do escritor, inclusive traduções. Na esteira do sucesso veio a lume, já a partir do primeiro número da revista, de janeiro de 1861, também como folhetim, o romance Humilhados e ofendidos, gerando nova onda de elogios a Dostô. A autorização de circulação do periódico acabou suspensa pelo governo em 1863, com os editores acusados de apoiar motins na Polônia. Mas, no ano seguinte, ambos fundaram Época, nova revista literária, onde, no mesmo esquema da anterior, foram publicadas as Notas do subterrâneo de Dostoiévski. Estavam, nas páginas de Tempo e Época, enfim fundados o estilo dostoievskiano definitivo, inclusive no tocante a seu trabalho como articulista. Mas o seu melhor ainda estava por vir.

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1864 se marcou como ano dificílimo para Dostô: sua esposa tivera uma piora no quadro de tuberculose, morrendo em abril. Logo em seguida, em julho, foi a vez de Mikhail, irmão do escritor, empacotar. Por outro lado, o trabalho ia de vento em popa. Primeiro, seus escritos em Época revelavam todo o seu brilhantismo – o que não evitou que a revista fechasse em março do ano seguinte, com as contas no vermelho. E segundo, o lançamento de Notas do subterrâneo atingia uma importância até então ímpar para o escriba: o livro abriu a primeira das duas trincas de grandes obras de Dostoiévski. Depois de seu lançamento, da morte daqueles que mais amava e do fim dos encargos que sua revista suscitava, o autor decidiu viver no isolamento, para apenas escrever, ensimesmado, sem dar bola para as agitações e modas dos meios artísticos e políticos da Rússia e da Europa de então. O primeiro fruto dessa decisão foi um verdadeiro estrondo cultural, divisor de águas na literatura ocidental. Em 1866, a hoje tida por muitos como magna opus do autor deu as caras: Crime e castigo, necessária ontem, hoje e sempre, ad infinitum. Seria necessário um texto à parte só sobre ela. Em seu tempo o livro acumulou muita fama, e também muita polêmica em tons macabros, por quase repetir o assassinato real de um agiota local por um estudante, em 12 de janeiro de 1866. De qualquer maneira, um ano depois, O jogador era ainda publicado, fechando o primeiro trio de obras que até então representavam o ápice de Dostô.

Nada é tão bom que não tenha como melhorar. E o mesmo vale para o que é ruim, que sempre pode piorar. Apesar de seus sucessos literários, na segunda metade da década de 1860 Dostoiévski passava por questões de saúde e finanças, tendo-se em vista seu reconhecido vício na jogatina, adquirido anos atrás em uma viagem à França. Fora isso, desde sua soltura da katorga, e até sua morte, nunca recuperara a confiança de sua juventude, perpetuamente preocupado em sedimentar sua reputação, entre crises de ansiedade. Embora essas coisas o impedissem de escrever com tranquilidade, como planejado, o escritor tivera um alento, no campo emocional: se casara de novo, com a estenógrafa Anna Grigoriévna Snitkina, de apenas 20 anos, que havia sido contratada para ajudá-lo a concluir O jogador. Com ela, foi fazer um tour pela Europa a partir de abril de 1867. Era para ter durado alguns meses. E era para ter sido lindo. Mas, como o seu motivador, para Dostô, foi a fuga de credores, a viagem acabou durando quatro anos. Incautos aqueles que acham que o casal passou o tempo todo na curtição: a 5 de março de 1868, em Genebra, na Suíça, Anna deu à luz à primeira filha do casal, que, vítima de uma gripe, faleceria com pouco mais de dois meses. Enquanto isso, descontrolado, Fiódor perdia todo o seu dinheiro nos jogos de azar. E o de Anna também.

Mesmo fora de seu país, nosso bamba letrado não deixou de escrever, mandando originais para que revistas russas publicassem suas obras como folhetim, ou como contos. Veio ainda a lançar outras narrativas depois organizadas em livros, antes de morrer, dentre os quais três constam hoje no panteão de suas grandes obras – o segundo trio de ouro dostoievskiano. O primeiro desse segundo trio foi O idiota, de 1869. Publicado na imprensa e considerado muito original, foi novo vulto literário na época de seu lançamento, desses que elevam autor a outras categorias – mas, no caso, Dostô já se encontrava estabelecido, ao menos como intelectual. Nesse livro, aliás, por meio do personagem do príncipe Michkin, Dostoiévski narrava sua experiência de quase fuzilamento, anos atrás – espécie de vingança literária e historiográfica de Nicolau I.

Liubov, segunda filha de Anna Grigoriévna com Dostô, nasceu em 26 de setembro de 1870, enquanto o autor escrevia Os demônios, outro romance fundamental no conjunto de sua obra. Em 8 de junho de 1871 a família retornava a São Petersburgo, onde, no mês seguinte, no dia 16, um novo rebento dostoievskiano veio ao mundo, também com o nome Fiódor. No ano seguinte, entre novembro e dezembro, Os demônios foi publicado e aclamado (entre ele, O eterno marido, de 1870, e O adolescente, de 1875, narrativas mais curtas, foram consideradas “menores”).

A grande obra que fecharia – e com chave de ouro – tanto o segundo trio de célebres romances de Dostoiévski quanto sua produção literária, como um todo, foi na verdade tão grande que muitos a consideram à parte, fora de qualquer categoria. Tanto que ela sequer cabe neste parágrafo, mas nos últimos deste texto. Aqui entram, sim, os grandes contos que o autor publicou quando já havia retornado a São Petersburgo: Bobok, de 1873; O mujique Marei e Uma criatura gentil, em 1876; e O sonho de um homem ridículo, em 1877. Em outro plano, os artigos de Dostoiévski para o jornal O Cidadão, reunidos posteriormente no volume Diário de um escritor, nome da coluna que assinava no periódico, datam da mesma época, escritos que foram entre 1873 1878. Foi ali, nesse momento, e na imprensa, que a fama do autor atingiu novo patamar na inteligência russa. Ah, sim: nesse meio tempo, em 10 de agosto de 1875, Anna e Fiódor tiveram tempo de ter mais um filho, o caçula Aleksei.

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Em fevereiro de 1878 mal dava para dizer que Dostoiévski já havia comido o pão que o czar amassou. O prestígio do autor em sua coluna no jornal O Cidadão o rendeu um convite inédito em sua vida: o de ser tutor, em conversas informais, de Serguei e Paulo, os filhos de Alexandre II (que, desfavorecidos na linha sucessória, não tinham importância como futuros monarcas, mas nunca se sabe, tragédias acontecem). O convite foi aceito, mas, em 16 de maio do mesmo ano, Aleksei, o caçula do escritor, veio a óbito. O refúgio de Dostô, se é que existia, deve ter sido a escrita: por volta de abril começou a trabalhar em sua última grande obra, cuja primeira parcela, no velho esquema do folhetim, deu as caras na imprensa literária no início de fevereiro do ano seguinte, 1879. Atraiu ao público leitor imediatamente. Foi concluída pelo em novembro do mesmo ano, e veio sendo publicada em partes até 1881, mas já em 1880 o primeiro de seus dois volumes, em livro, veio a lume no mercado editorial russa da época. Vendeu, em poucos dias, metade da tiragem total de 3 mil exemplares.

Em 1881, um verdadeiro pilar caiu sobre a história da literatura humana – quiçá da literatura universal, já que pouco sabemos sobre os escribas de outros planetas. Crime e castigo já havia sido assim, mas Dostoiévski tinha coisa a mais em sua manga. Outra obra prima sua chegava ao público por completo, naquele ano: Os irmãos Karamázov. Foi o último e, sustentam muitos, melhor livro do expoente russo, como que um verdadeiro canto de cisne. O volumoso romance, lido e relido por Josef Stálin, foi louvado por Sigmund Freud como “A maior obra da história”, ao lado de Édipo Rei e de Hamlet. Mas, no mesmo ano de 1881, outro pilar cairia não sobre, mas da história da literatura mundial: o próprio Dostoiévski. O autor não tivera o devido tempo para colher os devidos louros de sua derradeira obra. Pois, pouquíssimo depois da publicação de sua conclusão, como folhetim, já a 9 de fevereiro de 1881, o autor vinha a óbito, aos 59 anos, em São Petersburgo, vítima de uma hemorragia pulmonar.

É bem verdade que, nas turbulências e glórias de sua vida, Dostoiévski deixou este mundo por cima: em seus últimos dias era aclamado pelo público e pela crítica, e vice-presidente da Sociedade Eslava Benevolente. Sua saúde, entretanto, dizem boas e más línguas, havia sofrido um duro baque quando o seu antes retumbante discurso de inauguração do memorial ao escritor Aleksander Pushkin em Moscou começou a ser atacado por intelectuais conservadores, que erroneamente farejaram traços de socialismo utópico francês em suas palavras ditas, na ocasião. Bobagem. Mas o inseguro Dostô não conseguia digerir coisas assim. Fato, afinal, é que cerca de 30 mil pessoas, de classes sociais diversas, fizeram parte do cortejo fúnebre do escritor. Mas o que é a morte, se não pura vida, a alguém como Fiódor Mikhailovich Dostoiévski?

Explore o documento:

Em 1973, na série “As obras primas que poucos leram”, a revista carioca Manchete aborda Crime e castigo, de Dostoiévski, em texto de Otto Maria Carpeaux.

A revista carioca Manchete aborda Crime e castigo, de Dostoiévski.

 

Fonte: Biblioteca Nacional