Sobre cancelamentos

Justine Sacco era uma executiva que se deslocava, no final de 2013, a fim de passar as festas com a família. Ela ia de Nova Iorque para a Cidade do Cabo. O avião fez uma escala em Londres. Nesse estágio, ela postou, em sua conta no Twitter, com menos de 200 seguidores: “Partindo para a África. Espero não pegar Aids. Brincadeirinha. Sou branca!”.

Portas fechadas, desligou o celular e dormiu. O voo durou 11 horas. Ao pousar, soube que sua vida havia capotado. A declaração foi uma das mais vistas na plataforma, naquele dia, no mundo inteiro. Sua empresa estava sendo furiosamente atacada. Ela foi demitida ainda durante o trajeto. Tentou se justificar: o texto ironizava o pensamento da “bolha” em que viviam os seus conhecidos, ignorantes do que ocorria no continente africano. Não teve sucesso. Todos estavam contra ela. Até Donald Trump tuitou em protesto. Justine foi cancelada.

Esse episódio é contado como o nascimento da cultura do cancelamento. Cancelar é um boicote que, normalmente, parte de usuários das redes sociais. Diferentemente de sanções econômicas e políticas, que são atos oficiais, juridicamente estruturados, os cancelamentos são medidas privadas, mas que ganham contornos de movimentos de massa. Alguém que age contra um parâmetro ético estabelecido é rapidamente identificado. Exige-se a sua eliminação do convívio coletivo. Não a física, mas a virtual e a comercial. O que esse indivíduo produz deve passar a ser ignorado.

Cancela-se de tudo: seres humanos e empresas. Agora, ao que tudo indica, países também. Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, em 24 de fevereiro, algumas sanções econômicas têm sido impostas ao país agressor. Essa, como é óbvio, é uma maneira legítima de pressionar a mudança de atitude, por meios não militares.

Mas, independentemente desse território da geopolítica e da economia, uma outra série de atos reativos contra os interesses russos está em marcha, gerando algumas perplexidades. Seus atletas estão impedidos de competir em eventos esportivos. A seleção nacional não disputará a Copa do Mundo de futebol, no Catar, este ano. Artistas estão sem poder se apresentar fora de sua pátria. É como se o país inteiro estivesse sendo cancelado.

É aqui que algumas ponderações são necessárias. Estados devem exigir respeito ao direito internacional, afastando-se do relacionamento com um ente soberano que age com violência desautorizada. É igualmente razoável cogitar que uma empresa deva parar de atuar na Rússia, para preservar sua imagem e revelar os seus valores. No entanto, no universo das pessoas individuais, não é tão simples. A Rússia, que longe está de ser uma democracia plena, dispõe de meios para perseguir os seus dissidentes políticos. Sistemas jurídicos autoritários não costumam zelar pela divergência.

Isso quer dizer que, em alguma medida, pessoas que vivem em democracias seguras, estão exigindo que seres humanos sacrifiquem sua integridade física, sua liberdade, seus bens e até de seus familiares, em nome da causa moralmente correta. Muitos russos espontaneamente já o fazem. Neste momento, há, ao que tudo indica, milhares deles presos por expressarem sua oposição à guerra. Além da prisão em si, pouco se sabe do tratamento dado a tais prisioneiros. O martírio é uma posição que se possa cobrar?

Mas, além dessas cobranças individuais, e das especiais a artistas e atletas, há outra forma de “cancelamento” estranha: a de vultos da cultura russa. A Orquestra Filarmônica de Cardiff, no País de Gales, excluiu o compositor Tchaikovsky (1840-1893) da sua programação por considerá-lo “impróprio no momento”. Na Itália, um curso comemorativo do bicentenário de Dostoievski (1821-1881) foi suspenso pela Universidade de Milão (mas, depois, foi retomado). Em Florença, o prefeito recebeu pedidos de que uma estátua do escritor fosse derrubada. Em Gênova, um festival de teatro dedicado a ele foi desmarcado.

Logo Dostoievski.  A Europa, no final da década de 40 do século XIX, viveu grandes revoluções e os monarcas estavam atentos a isso. Em 1849, o escritor participava de um grupo, o Círculo de Petrachevski, que foi acusado de conspirar contra o Tzar Nicolau I. O tirano reagiu com energia. Dostoievski foi preso por haver lido publicamente uma carta assinada pelo intelectual Belinski endereçada ao também escritor Gogol (nascido ucraniano, aliás), na qual este era criticado por seu conservadorismo.

Só por isso, Dostoievski foi condenado à morte por fuzilamento. No exato momento da execução da pena, o castigo foi comutado em trabalhos forçados na Sibéria. Ali ficou até 1854, quando, mais uma vez, sua punição foi mudada, desta vez para serviço militar, por tempo indeterminado, naquela mesma região gélida. Somente em 1859, conseguiu dispensa por motivos de saúde. Poucos podem dizer que suportaram tanto por um posicionamento político. Quantos ousariam correr o risco desse tipo de cancelamento?

Autor

José Rollemberg Leite Neto

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