Silêncio normativo: lacuna, dever de legislar e o mito da completude do ordenamento jurídico
Ronivon de Aragão,
Juiz federal e membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas.
Firmei a premissa, em textos anteriores, de que o silêncio é a “fronteira” do ordenamento jurídico e que, não fosse a lacuna (ou outra forma de silêncio), o direito seria tido como elemento suficiente e pleno para exercer normatividade sobre todos os fatos da vida, presentes e vindouros. E, assim, tudo seria direito e nada poderia diferenciar o direito de outras fontes de normatividade. Disse também que o limite para se reconhecer a lacuna deriva dos polos “satisfatoriedade/insatisfatoriedade” do silêncio normativo.
O pressuposto primário para o reconhecimento da ocorrência de uma lacuna (ou de um silêncio insatisfatório) decorre de uma concepção de que há um dever de legislar. Tal dever de legislar advém, seja quando a lacuna é verificada pela ausência de normatização de determinada conduta ou fato relevante para o direito, ou, com maior razão, quando a lacuna é observada em decorrência da ausência de cumprimento de uma determinação constitucional direta.
Pode-se falar em um dever geral e em um dever específico de legislar, enquadrando-se o primeiro “predominantemente no campo político-constitucional, enquanto os deveres específicos de legislar se situam já no campo jurídico-constitucional” (SILVA, 2003, pp. 22-23).
Diante dessa diferenciação feita pela doutrina portuguesa de Jorge Pereira da Silva, “ao operador judiciário cabe a tarefa de se munir dos mecanismos que lhe permitam verificar quando há um dever geral de legislar a que o legislador se encontra adstrito e quanto é que este tem de observar um dever específico” (ABREU, 2011, p. 107). Nesse particular, uma advertência especial para legisladores e juízes: o dever geral de legislar diz para o legislador, mas o vácuo não deve, em princípio, exigir qualquer atividade “integrativa”; o dever específico de legislar, se não cumprido, pode autorizar o juiz a intervir.
Na compreensão de que existe um dever geral de legislar se encontra embutido o próprio conceito de incompletude do ordenamento jurídico, desde quando se pressupõe que o legislador pode ter, de forma consciente ou inconsciente, deixado de regular determinados fatos.
Não se pode falar, contudo, em um dever de legislar e em lacunas jurídicas, sem que se retome a questão da plenitude ou da incompletude do ordenamento jurídico. Pleno é o ordenamento jurídico por conter todas as normas necessárias para aplicação aos casos concretos que se apresentam para apreciação do denominado operador do direito.
A completude do ordenamento jurídico não passa de um mito, porque o contrário seria admitir que sempre existirá uma norma pronta para que ao seu comando seja subsumido determinado fato ocorrido no mundo da vida.
A busca incessante pela demonstração da inexistência de lacunas – o que seria a profissão de fé na infalibilidade da completude do ordenamento jurídico – é a característica do direito, em especial nas sociedades modernas, cujo monopólio da produção do discurso jurídico é do ente estatal. Por outro lado, essa concepção expõe uma fraqueza do ordenamento jurídico, porque se de tudo ele se ocupa para normatizar os fatos, turva-se a fronteira entre o jurídico e o não-jurídico.
A sutileza do reconhecimento da lacuna, longe de mostrar uma deficiência do direito na normatização do mundo da vida, torna-se uma demonstração de que o direito produz seu espaço, perfazendo diferenças essenciais de outros sistemas de normatividade social (religião, moral, normas de etiqueta e de convivência social, dentre outras).
Assim, a lacuna não é a prova de que o ordenamento jurídico se tornou frágil, mas, ao revés, é a demonstração da sua força, porque permite inferir que determinado fato – que se encontrava alheio ao fenômeno jurídico, satisfazendo-se inteiramente com outras normatizações – se apresenta para ser abarcado pelo direito.
REFERÊNCIAS:
SILVA, Jorge Pereira da. Dever de legislar e proteção jurisdicional contra omissões legislativas. Lisboa: Universidade Católica, 2003.
ABREU, Joana Rita de Sousa Covelo de. Inconstitucionalidade por omissão e ação por incumprimento: a inércia do legislador e suas consequências. Curitiba: Juruá, 2011.