Silêncio normativo: a completude do ordenamento jurídico como ideologia
Ronivon de Aragão,
Juiz federal e membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas.
A completude do ordenamento jurídico, no sentido de inexistência de lacunas e de proeminência do discurso do direito, radica em uma concepção ideológica. Para tanto, os seus defensores necessitam obstaculizar o reconhecimento de qualquer lacuna ou, quando muito, apontam para todas as rotas de escape construídas para se vedar o reconhecimento da lacuna como o momento essencial que delimita o ser do direito.
O dogma da completude do ordenamento jurídico tem seu fundamento histórico no momento em que o direito romano pretendeu que nada teria “a acrescentar nem a tolher”, além do que constava do corpus iuris (BOBBIO, 2014, p. 117). Daí que, muito antes da tradição que se firmou no sentido de que não ensinava direito civil francês, mas, sim, o Código de Napoleão, já havia essa concepção de completude do ordenamento jurídico (ou de percepção de sua completude). Atribui-se ao jurista francês Jean-Joseph Bugnet a célebre frase: “Eu não conheço direito civil, eu ensino o Código de Napoleão”. A autoria é incerta e contém outras versões, sendo que, no espaço deste texto, não cabe ingressar nesse debate.
O que importa ressaltar é que radica tal pressuposto no próprio direito romano, como reportado pela lição de Norberto Bobbio acima citada. E, acrescenta o autor italiano que, “nos tempos modernos, o dogma da completude tornou-se parte integrante da concepção estatal do direito, ou seja, daquela concepção que faz da produção jurídica um monopólio do Estado” (BOBBIO, 2014, p. 117). Assim, a ideologia da completude do ordenamento jurídico se tornou um aparato imprescindível à concepção de Estado centralizado e que detém o monopólio para dizer o direito.
Essa ideia de completude, além de dogma – servindo-me da expressão de Norberto Bobbio (2014, p. 117) –, revela-se como uma ideologia. Não se nega que o termo ideologia “tem um amplo espectro de significados históricos, do sentido intratavelmente amplo de determinação social do pensamento até a ideia suspeitosamente limitada de disposição de falsas ideias no interesse direto de uma classe dominante” (EAGLETON, 1997, p. 193).
De qualquer sorte, seja pelo viés de um conceito racionalizador da ideologia (situando-a no contexto do estudo das ideias), seja dentro de uma concepção pejorativa (ao tê-la como mero falseamento da realidade), não se olvida que, ao invés do “bom senso” que todos julgam possuir (DESCARTES, 1979), no caso da ideologia, ninguém assume esse compromisso. E, nada obstante, todos combatem uma ideologia disseminando uma outra ainda mais poderosa; nada mais contraditório do que a afirmação de que, ao infirmar uma prática, não está sendo ideológico. O só fato de assim proceder já constitui o espaço da própria ideologia.
Retorno aqui a Terry Eagleton para considerar que a ideologia “é antes uma questão de discurso que de linguagem – mais uma questão de certos efeitos discursivos concretos que de significação como tal” (1997, p. 194). A ideologia da completude do ordenamento jurídico é repetida à exaustão pelos juristas como uma oração apta a apaziguar as dúvidas dos fiéis sobre o ritual jurídico e sobre a necessária hierarquia da ordenação jurídica exercida sobre os fatos do mundo da vida.
Aqui, faço uma ligação entre ideologia e pensamento utópico. Não, no sentido de que a ideologia é toda uma utopia; mas, ao revés, porque a ideologia tem por enunciar uma ideia de mundo e de contexto que almeja estar acima da mera condição visível. Nisso, ela pode despontar como um pensamento utópico. Tratarei disso em um próximo texto.
REFERÊNCIAS:
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução Ari Marcelo Solon; prefácio de Celso Lafer ; apresentação de Tércio Sampaio Ferraz Júnior. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2014.
EAGLETON, Terry. Ideologia. Uma introdução. Tradução de Silvana Vieira, Luís Carlos Borges. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista: Editora Boitempo, 1997, p. 193.
DESCARTES, René. Discurso do Método. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. (Coleção Os Pensadores) 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.