O terrorista e o presidente
Uma série de televisão de algum sucesso dos primeiros anos deste século/milênio foi “The West Wing”, no Brasil conhecida como “Nos bastidores do poder”. A trama se passa em torno do cotidiano do lado oeste da Casa Branca, onde despacha o chefe do executivo estadunidense. Em um de seus episódios, o protagonista, o presidente Josiah Bartley, tem de decidir se concede a comutação de pena a um assassino que está no corredor da morte. Detalhe: Bartley é católico. No catolicismo, a condenação à morte é inadmissível. O personagem vive, portanto, um dilema entre a sua convicção religiosa e a adequada utilização da prerrogativa presidencial da clemência. No final deste artigo, a escolha dele será revelada.
Qual é a relevância desse fato perdido em um entretenimento enlatado? Nenhuma, exceto a de ilustrar o processo por que passa o agente público, que tem de distinguir a esfera do jurídico e do político daquela onde se situa a sua fé religiosa. Os três domínios têm pretensões universalizantes, mas a atuação estatal pressupõe-se independente da dogmática dos diversos credos.
Um evento recente ajuda nessa reflexão. Em 15 de abril de 2013, os irmãos Dzhokhar e Tamerlan Tsarnaev detonaram duas bombas perto da linha de chegada da Maratona de Boston, matando três pessoas e ferindo centenas. Três dias depois, em fuga, eles assassinaram um policial do campus do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, sequestraram um estudante e travaram uma batalha de rua com a polícia, na qual Dzhokhar inadvertidamente atropelou e matou Tamerlan. Dzhokhar foi preso no dia seguinte.
Ele foi acusado por crimes capitais. Na seleção do júri, as partes propuseram um formulário de triagem de 100 perguntas, que incluía quesitos sobre se a cobertura da mídia influenciara os potenciais jurados. O Tribunal Distrital, que é a primeira instância, recusou-se a incluir uma pergunta proposta que pedia a cada jurado em potencial que listasse os fatos que ele havia conhecido sobre o caso na mídia e de outras fontes. A questão seria muito “desfocada” e “sem orientação”. Após três semanas de interrogatório pessoal, um júri foi montado.
Dzhokhar buscou mitigação de sua responsabilidade alegando que Tamerlan havia planejado o atentado e o pressionado a participar. A defesa dele, para mostrar a índole do irmão, tentou apresentar declarações escritas de que Tamerlan havia participado antes de um triplo homicídio na cidade de Waltham. A acusação pediu que se excluísse qualquer referência a esses assassinatos e foi atendida. O júri concluiu que seis dos crimes de Dzhokhar justificavam a pena de morte.
Porém, o Tribunal Federal de Apelações do 1º Circuito, sediado em Boston, anulou essas condenações, por dois motivos. Primeiro, considerou que o Tribunal Distrital errou durante a seleção do júri, recusando-se a perguntar sobre o grau de exposição à mídia de cada jurado em potencial. Segundo, porque excluiu provas relativas ao possível envolvimento de Tamerlan nos assassinatos de Waltham.
Em 4 de março passado, a Suprema Corte dos Estados Unidos reverteu essa decisão. Em “Estados Unidos versus Tsarnaev”, por 6×3, ela considerou que o veredito não tinha nulidades e revalidou a condenação. A posição majoritária foi redigida pelo juiz Clarence Thomas, o seu membro mais antigo. Para ele, cabe ao juiz a seleção dos jurados, com elevada dose de liberdade. Sendo razoável no procedimento, aprova-se a escalação. O Tribunal de Apelações não pode criar regras sobre qual é a melhor conduta de triagem. A Suprema Corte também avaliou ser correto não se admitir as declarações que a defesa quis que fossem consideradas no julgamento, por sua impertinência com o caso e pelo risco de confundir os jurados.
A divisão de votos foi precisa: os juízes indicados pelos presidentes republicanos votaram contra a anulação e pela restauração do veredito condenatório. Já os magistrados indicados pelos democratas votaram pela manutenção da anulação e a necessidade de rejulgamento. Estes entendem que casos que resultam em pena de morte devem ter menos espaço para liberdades judiciais, como as de seleção de jurados e de exclusão de provas.
O debate não era sobre a constitucionalidade ou a conveniência da pena de morte, mas sobre se um julgamento teria dado ao acusado as devidas garantias. A resposta da Suprema Corte obedeceu ao talho ideológico do colegiado. Os conservadores/republicanos são costumeiramente mais vocacionados às proteções dos direitos persecutórios. Os liberais/democratas, ordinariamente, não endossam a pena de morte e olham mais generosamente para o direito dos acusados.
Problema pode ter o presidente Joe Biden. Ele é católico, declaradamente contra a pena de morte, mas o seu governo trabalhou pela reversão da decisão que anulara o veredito. Ele até pode dizer que o debate não era de mérito, todavia, pode vir a ser convocado a decidir se concederá clemência ao terrorista. Bartley não concedeu.