O silêncio como determinante da ‘pauta’ do ordenamento jurídico

A relação entre silêncio e direito não é de todo desconhecida e nem olvidada pelos juristas, eis que “refletir sobre o silêncio e seu significado para o direito é tarefa que seduz e encanta, em que pese a dificuldade encontrada para desmistificá-lo e compreendê-lo” (FERRARI, 2015, p. 81).

A doutrina clássica igualmente se preocupou em demonstrar que o silêncio também “pode ser interpretado, de molde a revelar o que constitui, ou não, o conteúdo da norma” (MAXIMILIANO, 1979, p. 208).

Nada obstante, são escassos os textos de juristas que pretendem “desmistificar” o silêncio no direito. E quando tal ocorre, faz-se pelo seu viés “mais barulhento”, que se reporta à situação em que o ordenamento lhe atribui consequências jurídicas diretas.

Em futuros textos tratarei dessa faceta “barulhenta” do silêncio.

Não é a preocupação deste pequeno ensaio; aqui, o mote diz com a assertiva de que o silêncio é a “fronteira” do ordenamento, o qual se preocupa, de forma mais direta, somente com o dito e, em especial, com o texto escrito. Claro resta que se trata de tarefa que traz alguma dificuldade, porque “a fala divide o silêncio” (ORLANDI, 2007, p. 32).

A decisão judicial – expressão mais efetiva da norma – já foi comparada a um “romance em cadeia”, no qual os juristas, em especial os julgadores, se sucedem “escrevendo”, peça por peça, capítulo por capítulo (DWORKIN, 2001, pp. 237-238).

Neste ensaio, pretende-se comparar o ordenamento jurídico (entendido como lei, norma, código, dentre outros aspectos mais reducionistas dessa expressão) à pauta musical.

É sabido que a música pode ser executada “de ouvido”, para quem possui de memória todas as notas e acordes. Mas, considerando a extensão e a impossibilidade de se saber, de antemão, todas as notas, a peça é escrita na linguagem musical. A isso se dá o nome de pauta, a qual pode ser traduzida como a escrita da música, a forma como ela, por suas semibreves, mínimas, semínimas e outras tantas repartições de tons e semitons, se apresenta na forma de partitura (PRIOLLI, 2011, p. 8).

Mas a música possui pausas, que são espaços (internos) do silêncio dentro dela, que a integram, desde quando a extensão do silêncio entre uma nota dá a dimensão da nota seguinte, em tudo considerando a escala e a concepção de harmonia. Nesse sentido, “as pausas têm função rítmica e função estética definidas no sentido musical” (PRIOLLI, 2011, p. 13).

Seria de todo inconveniente supor que o silêncio – normativo – compõe a pauta do ordenamento jurídico? Inexiste inconveniência no pressuposto de que o silêncio é sua fronteira. O silêncio da norma sobre determinado fato dá o tom da finalidade do texto (escrito), assim como a pausa torna audível a peça musical. Seja ele tratado como lacuna ou como silêncio eloquente, compõe a pauta do ordenamento, que não se faz sem ele (o silêncio). Outra questão é saber se tal lacuna vai exigir uma “integração” da norma.

Sem o silêncio, o direito seria tido como pleno para exercer normatividade sobre todos os fatos, ainda que irrelevantes. E se tudo é direito – nada o é – porquanto sem diferença de outras fontes (normas morais, por exemplo), assim como uma peça musical sem pausas seria um ruído permanente.

 

Referências:

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FERRARI, Regina. O silêncio e o direito. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 13, n. 51, pp. 81-97, out./dez. 2015.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1979.

ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas: Editora Unicamp, 2007.

PRIOLLI, Maria Luísa de Mattos. Princípios básicos da música para a juventude. 52. ed. Rio de Janeiro: Casa Oliveira de Músicas Ltda., 2011.

Autor

Academia Sergipana de Letras Jurídicas

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