O livre pensar nos EUA e no Brasil
Por conta do pastor Martins Luther King, o mais proeminente defensor dos direitos civis estadunidense veio à tona o caso New York Times Co. vs Sullivan, de 1964, cujo desfecho acha no seu nome especial tonalidade. Com efeito, Luther King era pastor da igreja batista, em Montgomery, Alabama. Lá pelos idos de 1960, quando o clima entre brancos e negros exigia filtro solar em razão de sangrentas disputas raciais (a isso associada uma série de manifestações em defesa dos direitos civis), estudantes do Alabama acabaram por tomar uma sova da polícia local. Tudo se deu em torno de uma passeata organizada por discentes negros que defendiam igualdade e respeito pelas liberdades públicas no sul dos EUA, historicamente marcado pela intolerância contra os afrodescendentes.
De fato, a polícia repeliu os integrantes da passeata, mas não há registros de que a ação policial tenha sido irascível. Sucede que o New York Times, em 29 de março de 60, publicou uma matéria que expunha o fato de maneira um tanto quanto fora de foco. Segundo o jornal, os policiais lançaram uma onda de terror sobre os estudantes, acrescentando que a universidade do Alabama havia sido cercada por um forte aparato, que desceu o sarrafo. Não satisfeito, o jornal ainda declarou que aqueles mesmos policiais tinham bombardeado a casa do pastor Martin Luther King, prendendo-o e torturando-o. Algo grave. Mas não muito compatível com a realidade, pois Luther King não tinha sido preso e tampouco torturado.
Desse modo, o chefe de polícia do Alabama, L. B. Sullivan, ajuizou uma ação contra o New York Times pleiteando uma indenização. No primeiro grau, Sullivan conseguiu que o New York Times fosse condenado em 500 mil dólares, decisão sustentada pelo tribunal de justiça estadual. Todavia, na suprema corte as coisas mudaram. Por quê? Por conta da interpretação que por lá foi atribuída à emenda nº 1 da constituição americana: “O congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao governo petições para a reparação de seus agravos”.
A constituição brasileira, no art. 5º, IV, estabelece ser “livre a manifestação do pensamento”. Todavia, o ordenamento jurídico nacional, ao contrário do americano, editou uma lei de imprensa, ainda na ditadura, que trouxe reflexos criminais para abusos na expressão do pensamento. Diferentemente da ordem pátria, os regramentos jurídicos do sistema norte-americano (common law) dependem substancialmente da interpretação que lhes é dada pela suprema corte, em pontos constitucionais. Assim, a liberdade de imprensa, nos Estados Unidos, desamarrou-se do common law, adentrando exclusivamente nas entranhas do constitutional law. Numa palavra, a liberdade de imprensa, nos EUA, foi erigida a dogma essencialmente constitucional. Diversamente, no Brasil, ainda na vigência da antiga Lei de Imprensa (Lei 5.250/67, declarada inconstitucional pelo STF), dependia-se da interpretação que o STJ lhe dava ao caso concreto. De qualquer forma, a decisão Sullivan inaugurou uma concepção da liberdade de imprensa, ali onde eventuais ofensas fossem irrogadas contra homens públicos, a exemplo do chefe de polícia do Alabama que, irresignado, como dito, judicializou a pretensa ofensa irrogada. Mas, não colheu o desejado êxito como se vê, a seguir.
Segundo a suprema corte americana, homens públicos (public officials), quando estivessem exercendo seu múnus público (official conduct), só fariam jus a uma indenização se quem os ofendesse o fizesse com actual malice, ou seja, com certeza de que a acusação era falsa. Na dúvida acerca da veracidade da acusação, a imprensa teria o direito de acusar, ainda que pudesse incorrer em erro. Seria o preço a pagar pelo exercício de uma atividade pública. Portanto, se o servidor não demonstrasse com total clareza (convincing clarity) que a imprensa sabia da falsidade da acusação, paciência. Portanto, se o homem público não aguenta pauladas da imprensa, saia da vida pública. Esse o espírito da primeira emenda. Esse o espírito que o art. 5º, IV, da CF deveria aspergir.
Clóvis Barbosa, Membro da ASLJ