O caso Estrellita
Uma denúncia anônima levou as autoridades ambientais equatorianas até a propriedade de Ana Beatriz Burbano Proaño. Elas buscavam uma macaca que vivia ali há 18 anos. Em 11 de setembro de 2019, Estrellita foi arrebatada e levada para uma unidade de conservação animal, onde foi posta em uma jaula e submetida a exames. Estes constataram que ela era portadora de problemas sérios de saúde.
Além desses problemas de saúde, havia os jurídicos. A primata pertencia a uma espécie silvestre ameaçada e sua posse era irregular. Ana Beatriz foi acusada de uma infração ambiental grave e procurou a justiça. Mas não para se defender. Ela ajuizou um “habeas corpus” para pleitear não seus direitos, mas os de Estrellita. Apresentou-se como sua “mãe e cuidadora” e disse que ela era “como se fosse um membro da família”. Pediu que a macaca fosse devolvida a sua guarda. O judiciário de primeira e segunda instâncias negou o pedido.
Em 28 de janeiro de 2020, durante o curso desse procedimento, Estrellita faleceu. A necropsia revelou muitos órgãos danificados. Ainda assim, houve a apresentação de uma “ação extraordinária de proteção” por Ana Beatriz à Corte Constitucional, que, em 22 de dezembro de 2020, aceitou analisar essa matéria.
O debate, até então, focalizava aspectos impeditivos da discussão: 1) o “habeas corpus” não colocaria Estrellita de volta à liberdade, mas a manteria em cativeiro privado; 2) a postulante pedia em favor de um animal, não de uma pessoa humana; e 3) pedia-se a permissão para cometer uma infração ambiental: manter um animal silvestre em local desautorizado pela autoridade competente.
Em 27 de janeiro de 2022, a decisão final do caso foi publicada (Sentença 253-20-JH/22). A Corte, a partir da exposição e fundamentação da juíza relatora Teresa Nuquez Martinez, apresentou um sofisticado arrazoado decisório, que teve dois votos divergentes, um dos quais declarado e que absorveu as objeções já enunciadas.
A solução judicial equatoriana navegou pela Constituição daquele país, de 2008, primeira a reconhecer, na América Latina, a Natureza como senhora de direitos. Concluiu-se, por dedução sistêmica, pela titularidade de direitos por parte de Estellita. Uma revolução digna de Copérnico no modo de enxergar o universo jurídico.
Para tanto, a Corte partiu do preâmbulo constitucional equatoriano e transitou por inúmeras disposições desse texto, que faz da Natureza (“Pacha Mama”) um titular de direitos, não mais apenas um objeto. Nesse texto constitucional, a quantidade de referências ao meio ambiente e seus elementos componentes é impressionante e manifesta a absorção de conteúdos decorrentes de tradições ancestrais locais.
A decisão propõe um “giro fenomenológico jurídico”, para além do antropocentrismo. Diz que a “senciência” (capacidade de ter sensações, sentimentos) de certos animais, que possuem sistema nervoso central e especializado, exige que sejam tratados de modo peculiar. A eles se reconhece a condição de sujeitos de direitos. Não como os homens, dada a evidente diferença de conformação, mas como seres com prerrogativas jurídicas próprias, que não podem ser desconsideradas pelos humanos.
Depois de identificar conceitos como especismo (o homem se coloca no topo da hierarquia natural e faz de todos os outros objetos), a decisão aduz que os animais, no âmbito jurídico, possuem dois princípios reitores próprios: 1) o interespécie (os ciclos vitais de cada animal devem ser considerados); e 2) o de interpretação ecológica (os animais estão em interação, e, portanto, possuem relações, inclusive com os respectivos predadores). Desse modo, a remoção deles de seus habitats e a domesticação respectiva devem ser feitas em excepcionalidade, evitando o sofrimento.
Postas essas bases, a sentença analisou o caso concreto. A ordem de “habeas corpus” foi denegada: Estrellita já morrera e, mesmo seu corpo, não poderia ser entregue a Ana Beatriz, por razões fitossanitárias. Mas, no sistema jurídico de lá, ao decidir, a Corte Constitucional deve indicar as medidas de reparação, que, no caso, incluíram as de prevenção. Uma série de diretrizes foi determinada, endereçada aos órgãos oficiais equatorianos, inclusive ao legislativo nacional, no sentido de prover de melhores ferramentas jurídicas a situação dos animais como sujeitos de direitos.
Essa decisão não é apenas uma curiosidade estrangeira. Ela pode ser vista uma sinalização de uma tendência transnacional. No Brasil, aqui e acolá, algumas decisões reconhecem a animais o direito de estar em juízo. São episódicas e bastante polêmicas. Numa delas, de 14 de setembro de 2021, em processo no qual figuravam como postulantes os cães Rambo e Spike, o Tribunal de Justiça do Paraná afirmou-os sujeitos de direitos fundamentais e, por consequência, portadores de capacidade de ser parte em processos judiciais, desde que devidamente representados (Agravo de Instrumento n° 0059204-56.2020.8.16.0000).
As mascotes estão com a macaca.