O banho na cisterna sangrando

Faz pouco tempo em que, na leitura de um romance, me deparei com o verbo sangrar: o açude sangrava. Então, me recordei da cisterna lá de casa, a se abastecer da água da chuva, que  o telhado se encarregava de transportar até as bicas, em forma de l, responsáveis pela condução final. Minha casa tinha cisterna, o que representava a segurança para, pelo menos, se dispor de água para beber e cozinhar. O mais vinha dos açudes no lombo dos burros. A cisterna dependia das chuvas, a água descendo de nível, sem nunca ter chegado a faltar. A chuva chegava no tempo certo, trazida pelas nuvens escuras que cobriam a Serra, na ciência de mamãe.

Então, vem o verbo sangrar, sem nenhuma conexão com sangue. O sangrar significa o ato de expelir água para fora do quadrado da cisterna, porque esta não comportava mais água, e, então, por um espaço, no qual se colocava uma telha, bem segura por cimento por todos os lados, a representar o papel de suspiro, a água jorrava quando o seu volume enchia a cisterna, o espaço não comportando mais nada. A água saindo simbolizava a cisterna sangrando.

O leitor não pode, nos dias de hoje, aquilatar a alegria minha e de Bosco, ante o fato, porque quando a cisterna sangrava, a qualquer hora do dia (não da noite), a gente largava o calção de lado e ficava embaixo do sangradouro, para receber na cabeça a água que corria, ou seja, que sangrava, fato que não ocorria com freqüência. O sangradouro estava a menos de um metro, o suficiente para a gente, pequeno, ficar embaixo dele e receber no corpo a água bem fria que a cisterna liberava. Difícil hoje pesar o entusiasmo que nos invadia naquele exato momento, indiferente a qualquer resfriado que pudesse dar as caras, resfriado que respeitava nossa alegria e se mantinha distante, pelas graças de Santo Antonio dos Pobres.

Quando a gente foi crescendo, o sangradouro perdeu o encanto. Já tínhamos água encanada,  que subia até a caixa do banheiro, o banho embaixo do sangradouro passou a ser uma página já lida. Os dois meninos, de idade inferior a dez anos, se tornaram adultos, não achando nenhum prazer nos banhos embaixo do sangradouro. Ficou o verbo sangrar, a me incentivar a juntar cacos de fatos do antanho da infância distante, na busca de reconstituí-los, ainda que em parte

Autor

Vladimir Souza Carvalho

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