O anel e a capa
Há quem diga que as pessoas só agem corretamente quando estão sob a vigilância dos que podem aprovar ou punir os seus atos. Para os que creem, Deus é a instância de fiscalização permanente e total: Ele é o vetor da conduta conforme uma determinada ordenação religiosa. Pensando nisso, Dostoiévski pôs na boca de Ivan Karamazov: “se Deus não existe, tudo é permitido”. Mais ou menos. Para os que não acreditam em sua existência, bem como para a ordem social laica da qual o Estado é o principal tutor, sobram ainda outras esferas de controle, como a jurídica e a moral.
O problema não é novo. Platão já tratou dele usando um mito: a história do anel de Giges, um pastor do rebanho do rei da Lídia. Um dia, em meio às suas tarefas rústicas, o camponês encontrou um cadáver. Vasculhando o morto, tirou-lhe o anel e pôs a joia no seu próprio dedo. Descobriu que era um objeto mágico: tinha o dom de fazer seu portador invisível, conforme fosse virado para a direita ou para a esquerda.
Giges usou o poder de ficar invisível para seduzir a rainha, matar o rei e assumir o trono. Não ter quem o reprimisse fez dele um criminoso, um sociopata. Essa alegoria está no segundo livro de “A República”. O filósofo grego usa essa metáfora para ilustrar o que é agir corretamente, moralmente. Em Platão, o comportamento moral é o que se pratica quando ninguém está olhando, quando não há crítica ou estímulo externo. Ele é pessimista. Entende que é pouco relevante quem usa o anel: a tendência humana seria agir como Giges.
Esse pensamento é de um ateniense do século IV A.C. Há, porém, quem veja a invisibilidade de modo mais otimista. A romancista J. K. Rowling, na série de livros que narra a saga de Harry Potter, a mais vendida de que se tem notícia, deu ao jovem feiticeiro uma capa com o poder de deixá-lo invisível. Ele a usava exclusivamente para propósitos positivos. Contornava proibições, mas, apenas aquelas que o impediam de alcançar bons objetivos.
De volta ao presente e à realidade. O deputado Arthur do Val foi à fronteira da Ucrânia com a Eslováquia. Ali, esteve diante da tragédia dos que fugiam de uma guerra na qual seus compatriotas estão sendo mortos e seu país está sendo arrasado. São milhões de pessoas que perderam tudo ou temem isso.
O político brasileiro resolveu fazer uma declaração sobre o que viu, em um grupo de seu aplicativo de mensagens. Sua atenção foi voltada às mulheres. Disse Sua Excelência: “Vou te dizer, são fáceis, porque elas são pobres. E aqui minha carta do Instagram, cheia de inscritos, funciona demais. Não peguei ninguém, mas eu colei em duas ‘minas’, em dois grupos de ‘mina’, e é inacreditável a facilidade”.
O deputado estadual supunha que essas palavras estavam de acordo com a ética daquele ambiente comunicativo. Alguém nesse grupo, todavia, compartilhou o áudio recebido, que alcançou outros conjuntos de ouvintes. Viralizou. Chegou à imprensa.
Os valores agora eram outros. Sua namorada soube e rompeu o relacionamento. Seu partido abriu processo de expulsão. A Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo iniciou um processo por quebra de decoro, que pode culminar com a perda do mandato.
Do Val retornou ao Brasil. Em sua chegada, declarou: “Uma coisa é o Arthur que foi lá fazer a missão, fez e saiu. A outra coisa é o Arthur que já tinha saído e mandou um áudio num grupo privado para os amigos dele, de forma errada, descabida. Não foi a melhor das posturas, é nítido, mas como falei, é um áudio privado”.
O deputado não era como Giges. O pastor que virou rei sabia que não poderia fazer coisas erradas se estivesse sob os olhos do público. Por isso movia o anel e desaparecia. O parlamentar, no entanto, imaginou que poderia fazer a declaração entre seus colegas de grupo. Em público, mas em um auditório confiável. Ele esperava que, naquele ambiente controlado, estivesse tudo bem, tudo certo: era possível dizer o que foi dito, sem temer consequências. Afirmou isso, inclusive, como elemento de justificação de seu “áudio privado”. Como se a ética desse pequeno conjunto de pessoas protegesse a sua manifestação completamente.
Ao que tudo indica, alguém ali não concordou e espalhou esse conteúdo. A ética de grupos diferentes não o acolheu. O direito também não o endossa. Exige-se de um representante do povo comportamento decoroso. Sugerir aproveitar-se de mulheres pobres, fugindo de uma guerra e indicar que elas são “fáceis” é abjeto. A sanção cabível é a perda do mandato. É preciso, porém, aguardar para saber qual é o parâmetro de valores compartilhado pelos parlamentares que o julgarão.
O político pretendia ser candidato a governador. Entrementes, com a repercussão do que declarou, desistiu do intento. No momento, ele diz considerar não se candidatar a mais nada. Talvez ele queira sumir. Ser esquecido. Desaparecer. Mas, nem o anel de Giges, nem a capa de Harry Potter existem. Ainda bem. Dá para imaginar o que alguém como ele teria feito se tivesse a posse desses objetos naquela fila de pobres mulheres.