Manchetes
Caetano Veloso, em “Alegria, Alegria”, de 1967, perguntava: “quem lê tanta notícia?”. Mais de 50 anos depois, o quesito segue atual. Não é mais o sol nas bancas de revista que enche de alegria e preguiça o transeunte, mas o universo digital que inunda os navegantes de sensações contraditórias e concorrentes. O bem mais escasso da era da informação é a atenção. Diante da superexposição a dados, os indivíduos têm um tempo ínfimo para dedicar aos eventos que reputam mais relevantes.
Especialmente na internet, para cativar o olhar e o subsequente clique, o sensacionalismo é uma estratégia bastante disseminada. Disseminada e pouco dissimulada. Se os jornais tabloides desenvolveram a técnica de explorar a curiosidade em manchetes canhestras, a era digital expandiu imensamente a ferramenta.
A extensão desse apelo desesperado ao olhar também não é delimitável por temas. Não só fofocas, não só aberrações, não só a violência crua acenam pedindo leitura: questões jurídicas importantes podem ser dragadas para esse pântano de teratologias.
Vale referir um exemplo. No começo deste ano, uma chamada circulou por jornais e sites brasileiros, vinda da Espanha: “O Tribunal Constitucional Espanhol aceita que se possa pagar uma dívida com sexo oral”. A mensagem, digna de imediata desconfiança, disseminou-se rapidamente. A matéria era encaminhada em grupos, replicada em redes sociais, viralizada, enfim. O bizarro atrai. Diverte.
Ocorre que a história não foi assim. Segundo informam os periódicos espanhóis, em setembro de 2019, nas Ilhas Baleares, uma mulher, de 38 anos, pediu um empréstimo de 15 mil euros ao ex-cunhado, de 58 anos. Segundo a devedora, o pagamento seria feito aos poucos. Dias depois, o credor passou a cobrar o pagamento, exigindo dela algumas sessões de sexo oral, por semana. Isso teria ocorrido por cinco vezes, até que a mulher, sentindo-se cada vez mais ameaçada e extorquida, contactou advogados e levou o caso às autoridades. Estas denunciaram o homem por delitos relacionados a essa conduta. Entretanto, os órgãos judiciários locais entenderam que houve consentimento livre entre adultos. Portanto, de crime não se poderia falar nessa situação.
Daí veio o recurso de inconstitucionalidade (“recurso de amparo”), que o Tribunal Constitucional (TC) negou-se a analisar. Ele entendeu que não existiria aí uma “especial transcendência”. Traduzindo: essa não era uma questão que justificasse a atuação da corte, que é de caráter excepcional. Logo, nem o TC, nem as instâncias anteriores disseram que pagar dívidas com sexo era legítimo. Apenas disseram que, naquele caso, não era crime e que não seria possível a análise da constitucionalidade da situação.
Note-se que a questão estava no âmbito penal. Dois adultos haviam concordado, inicialmente, quanto ao método de quitação de uma dívida e o sexo seria a forma pela qual a devedora extinguiria o seu débito. O TC, portanto, não avaliou se a felação era uma forma idônea de quitação, nem se esse acordo era ou não criminoso. Para a devedora, sim. Para o Tribunal de Mallorca, não. Para o TC, não era uma questão constitucional especial. Não merecia conhecimento. Fim de conversa.
O caso, obviamente, desperta sentimentos diversos. O primeiro, de curiosidade, já que a situação é completamente anormal. O segundo, de repugnância: a conduta masculina foi vil, aproveitando-se da fraqueza econômica de quem havia lhe pedido socorro. O terceiro, de preocupação: ficará isso assim?
No âmbito penal, muito provavelmente ficará, eis que houve o esgotamento das instâncias. Mas é possível que a mulher possa dirigir-se aos órgãos judiciários para reclamar a nulidade do contrato e uma indenização civil, fundada no constrangimento sofrido. A ver.
É leviano, desconhecendo as premissas detalhadas do caso concreto, assim como o direito espanhol, dizer que o TC errou, ou que falhou, antes dele, a justiça criminal das instâncias inferiores. Mas é possível afirmar que o TC simplesmente se declarou incompetente para analisar uma questão jurídica específica. Goste-se ou não da ideia, tribunais constitucionais não são onipotentes, e, tanto quanto qualquer braço estatal, devem se conter no âmbito de suas atribuições.
No Brasil, uma contratação assim tenderia a ser considerada ilegítima. O Código Civil, entre outras regras de interseção entre o direito e a moral, veda o estabelecimento de condições contratuais contrárias aos bons costumes e aquelas que sujeitam uma das partes ao arbítrio da outra (artigo 122). Diz ser ilícito o ato que excede esses padrões de moralidade (artigo 187). Seria, quando menos, um caso de abuso de direito.
Respondendo a Caetano: ninguém lê tanta notícia. As pessoas, de modo geral, têm se limitado a ler manchetes e passá-las adiante.