Lei de Proteção de Dados e o Mundo do Trabalho
Alguns documentários na TV nos revelam que nossos desejos, receios e expectativas racionais são dados conhecidos por empresas de alta tecnologia que negociam esses dados com outras empresas interessadas em nos convencer de que adotemos opções ideológicas, políticas ou simplesmente mercadológicas que em princípio não seriam as nossas opções.
A liberdade de fazer escolhas políticas, em desafio ao regime democrático, tem sofrido sério e abusivo desvirtuamento, como se deu no escândalo da Cambridge Analytica, retratado no documentário “Privacidade Hackeada”. Acerca do que conversamos em nossos ambientes mais íntimos, conta-nos Shoshana Zuboff, professora da Harvard Business School, que autoridades alemãs descobriram ser o Street View, programa usado no Google Maps, capaz de extrair dados de rede sem fio privadas, incluindo dados de redes wi-fi residenciais. Os segredos dos lares convertendo-se assim em dados, usados para fins comerciais. A empresa de tecnologia fez um acordo no valor de US$ 7 milhões para resolver o problema, o que está longe de gerar tranquilidade para todos nós.
No mundo do trabalho, a mineração e o tratamento de dados estão ocorrendo de modo curioso. Motoristas e entregadores que trabalham sob demanda por meio de aplicativos, em vários casos, submetem-se a sistemas de avaliação do trabalho que impõem rotas seletivas, suspendem e excluem trabalhadores resistentes ao comando algorítmico.
Esse gerenciamento, por inteligência artificial, vale-se de informações não compartilhadas (só a plataforma sabe sobre dados do seu suposto parceiro, não o contrário) e de um código-fonte supostamente protegido por direito que deveria sempre atender a função social: o direito de propriedade.
Como sobreveio a eficácia, no Brasil, da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), ao menos três questões reclamam alguma resposta: a) os dados pessoais do motorista ou do entregador podem ser apropriados sem seu consentimento? b) o titular desses dados pode conhecê-los, bloqueá-los ou exigir a portabilidade deles para outra plataforma? c) a decisão gerencial (gerenciamento algorítmico) de suspensão ou exclusão do trabalhador deve ser recorrível a um órgão provido de inteligência humana?
Sobre a primeira questão (permissão para uso de dados), a LGPD autoriza o acesso à informação (caberá habeas data?) e exige o consentimento, sem vício na formação da vontade, do titular de dados – mas essa solução legal é ambígua, pois consentimento livre em relações assimétricas (entre desiguais) é exigência que destoa da ambiência em que se produz.
A segunda questão (bloqueio e portabilidade pelo titular dos dados) exigirá, de quem lhe der resposta negativa, justificativa para um direito universal ser restritivo em relação a um trabalhador, só por ser trabalhador. Às vezes se argumenta que assim deve ser porque o sacrifício do trabalhador importará crescimento econômico, em benefício de todos. Amartya Sen, que se notabilizou quando recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 1998, sustenta, porém, que “o crescimento econômico não pode ser considerado um fim em si mesmo. O desenvolvimento tem de estar relacionado sobretudo com a melhora da vida que levamos e das liberdades que desfrutamos”, pois isso “também permite que sejamos seres sociais mais completos”. Ou a proteção de dados é universal, ou direito humano não é.
A terceira questão (direito de apelar a um órgão recursal composto por seres humanos) nos faz lembrar que o art. 22.1 do Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia assegura o direito de não se estar sujeito a decisão baseada unicamente no tratamento automatizado; mas o art. 20 da LGPD, no Brasil, foi alterado para não mais constar que o julgamento se dê por “pessoa natural”. Estaríamos todos, inclusive trabalhadores, submetidos a julgamento puramente algorítmico? Que ao menos possa ser julgado, ao final, o ser humano que programou o desalmado algoritmo.