Eumênides
Uma breve recapitulação. Páris e Helena foram para Tróia. Menelau, marido dela e rei dos espartanos, procurou o seu irmão Agamemnon, soberano de Argos, para juntos buscarem a esposa daquele. Agamemnon convocou os exércitos aliados. Contudo, as legiões depararam-se com ventos desfavoráveis por meses a fio. Era a deusa Ártemis que, caprichosamente, punia Agamemnon por haver se comparado com ela.
Agamemnon, desesperado, já que as tropas estavam começando a se rebelar, consultou um oráculo que lhe disse que a solução seria sacrificar a própria filha Ifigênia para deusa ressentida. Apesar de alguma relutância, ele matou a filha, aplacou a divindade e partiu para guerra. Lá ficou por dez anos e só retornou quando alcançou vitória na campanha troiana. Na volta, sua esposa Clitemnestra o aguardava para a vingança da morte da filha. Agamemnon foi assassinado pela mulher.
Orestes, filho desse casal, foi exilado e Electra, a outra filha sobrevivente do par, tratada como escrava pela mãe e seu amante, Egisto. Anos se passaram até que Orestes retornou. Ele havia consultado o oráculo de Delfos e ouvido deste que Apolo ordenara a morte da sua genitora como penalidade pelo crime praticado por esta contra o marido.
Orestes cumpriu o destino estabelecido por Apolo e chacinou a sua mãe e seu padrasto. Pouco depois desse delito, foi atacado pelas Erínias, antigas habitantes do Hades, divindades responsáveis pelo remorso e pela punição de quem matava familiares de sangue. Em fuga, Orestes refugiou-se no templo de Apolo.
Essa é a narrativa das duas primeiras peças da trilogia “Oresteia”, de Ésquilo: “Agamemnon” e “Coéforas”. Na terceira, “Eumênides”, dá-se a solução desse ciclo de sangrentas delinquências sucessivas.
Ao chegar no santuário, em Delfos, Orestes apelou para que Apolo o protegesse. Este colocou-se ao lado do perseguido. Mandou que ele procurasse Atena, deusa da sabedoria.
Deu-se o choque entre dois tipos de divindade: por um lado, as Erínias, deusas antigas, cuja missão vem de muito antes do nascimento de jovens deuses como Apolo. De outro, este, que se considerava no direito de administrar os mandamentos de Zeus, um dos quais o de que nenhum delito fique impune (por isso, a ordem para que Orestes matasse a mãe que matara o seu pai).
Atena percebeu o conflito e colheu das Erínias e de Orestes o compromisso de aceitarem o que viesse a ser decidido por um júri de homens atenienses, por ela presidido. Nele, Apolo defendeu Orestes, reconhecendo-se responsável pela ação deste. As Erínias, por sua vez, afirmaram a sua missão e o seu direito punitivo, que remontava à origem dos tempos e à monstruosidade do ato do acusado: matou quem lhe trouxe à vida.
O procedimento teve, portanto, contraditório, acusação delimitada e defesa garantida. Os jurados neutros votaram depois de ouvir os dois lados. Atena também votou, declarando sua posição em favor de Orestes. Conferido resultado, deu-se um empate. Segundo a regra estabelecida, a igualdade absolvia o acusado. Orestes estava liberado.
As Erínias não aceitaram o desfecho, mas Atena argumentou com elas pacientemente. Pouco a pouco, convenceu as arcaicas divindades a receberem o veredito com resignação. Elas admitiram o desenlace e, em compromisso com a deusa, tendo perdido o seu papel ancestral, passaram a cuidar não mais de vinganças, de castigos, de punições, mas de meios de assegurar aos homens e mulheres a prosperidade, a abundância, a saúde e a felicidade. Eram agora novas entidades: as Eumênides.
Esse seminal julgamento, construído na tradição mítica grega, deixou o legado metafórico do nascimento do processo conduzido por um terceiro independente, decidido por quem não fez parte do litígio, obedecendo a regras definidas e aceitas pelos contendores. Tem-se aí princípios até hoje vigorantes como o do contraditório, o da garantia da defesa e o do “in dubio pro reo”. Há, também, a figura do voto decisivo, o de Minerva, nome romano de Atena.
Mas, tanto quanto o advento lendário do tribunal, há também, nesse mito, a gênese da democracia. Em certo momento, Atena afirma: “Nem opressão, nem anarquia: eis o lema que os cidadãos devem seguir e respeitar. Não lhes convém tampouco expulsar da cidade todo o Temor; se nada tiver a temer, que homem cumprirá aqui os seus deveres? Se fordes reverentes ao poder legítimo, nele tereis um baluarte inexpugnável de vosso território e de vossa cidade, como nenhum povo possui (…). Proclamo instituído aqui um tribunal incorruptível, venerável, inflexível, para guardar, eternamente vigilante, esta cidade, dando-lhe um sono tranquilo. Eis a mensagem que vos quero transmitir, atenienses, pensando em vosso futuro.”
Disso tudo se extraem algumas conclusões. A conversão das Erínias em Eumênides é a ilustração de que a vingança é estéril e a justiça é fértil. Mas não só. A boa administração da justiça coloca-se, na memória do pensamento ocidental, há pelo menos 2500 anos, como pressuposto do convívio democrático, como um presente da sabedoria.