Em memória de um advogado

Há pouco o nome dele me veio à tona, dele, que eu não conheci. Só de manifestações em autos. Um advogado. Pelo que ouvia, sabia que, na condição de corregedor, mais cedo ou mais tarde, uma reclamação de sua lavra bateria na minha mesa. Errei. Não foi uma só, foram várias. A linguagem eminentemente cáustica. A capacidade extraordinária para criticar os juízes que, por distribuição, recebessem feitos por ele patrocinados. Nenhum magistrado prestava, todos lhe perseguiam, todos protelavam a execução dos julgados que lhe eram favoráveis. O lógico seria reservar uma vara só para cuidar de sua meia dúzia de feitos. Talvez fosse o ideal, mas ninguém cogitou de tal projeto. Nem poderia.

O tempo me favorecia na leitura calma e minuciosa de suas denúncias. Leitura e releitura. Setenta e cinco por cento era veneno puro, desses que até boi, só de sentir o cheiro, se infectava e morria. Na crítica me lembrava muitos que escreviam nos velhos jornais do começo do século passado, dentro das rivalidades políticas. Numa linguagem mais clara, metia o pau, pedra, bomba, tudo. Parecia até que tinha nascido fora de sua época. O restante da petição mudava de feição. Se na crítica era um carro de corrida, na parte jurídica não passava de um carro de boi, só faltando o gemido de sua movimentação, dando para perceber que lhe faltava o talento que, aliás, gastava nas pancadas dadas na magistratura.

De um aspecto, terminei lhe admirando, na coragem de representar um juiz, sem receio de nenhuma perseguição futura, que, aliás, nunca ocorreu. Ninguém se considerou suspeito de julgar questão por ele patrocinada, o que me lembrava um pequinês lá de casa, criado preso nos quatro cantos da sala. Ao conseguir escapulir, uma vez ou outra, latia para um cão policial, que, ao menos, não baixava o focinho para ver de onde vinha o latido.

Proclamava que não deixava de advogar para manter a tradição familiar de advogados. Não era a jia que elogiava o sapo. Era o auto-elogio. Afinal, se ninguém lhe elogiava, ele elogiava a si mesmo. Erasmo de Roterdã assim aconselhava. Teria o finado lido o Elogio da Loucura?

Autor

Vladimir Souza Carvalho

Outras Notícias

voltar para página anterior