Do pirão de osso
O almoço era sempre silencioso. No quadrado da mesa, papai em um lado; na sua esquerda, Alba e mamãe; no outro, em frente a papai, Bosco; e, no outro lado, eu. Do que me lembro. Cada um devorando seu prato. Era a regra geral. A exceção só ocorria no dia em que havia pirão na mesa. Então, o silêncio era substituído pela voz dos três filhos. Mamãe, silenciosa, como sempre. Ademais, não me lembro dela comendo pirão, Deus nos acuda, tinha juízo suficiente para evitar que lhe fizesse mal, o organismo eternamente delicado, escolhendo o que de mais leve podia deglutir. A gente, não. Papai, imagine, fazia o contraponto.
É verdade que, nesses dias, ele não repetia a ladainha da sexta-feira da Paixão, a manhã inteira apregoando o seu jejum, para, na hora do peixe com coco só faltar comer o prato. No dia do pirão, não havia lugar para o jejum. No almoço, era dele o comando para bater o martelo no osso e derrubar o tutano, era assim que chamávamos, que caia do osso, depois das pancadas dadas, o martelo numa mão, a outra, segurando o osso com um pano, o tutano jorrando no prato dos filhos, a algazarra que fazíamos nesse exato momento, todos nós desconhecendo o termo colesterol, sem aquilatar da gordura que descia e inundava o pirão, a carne, as verduras, tudo que de negativo o organismo engolia. Santa inocência num tempo em que não faltava cidreira no canteiro para o milagroso chá, remédio que deveria servir para todos os males, menos para remendar braço quebrado, à míngua da ciência que chegaria depois, com muito atraso. Até então, banana para o que desconhecíamos.
Não sei quando comi o último pirão de osso, nem me arrisco a invadir a memória, e, muito menos, a sacudí-la, para dela tentar extrair a época certa. Não me lembro nem do ano. O pirão de osso se tornou apenas uma fotografia que não existiu, reunindo cinco pessoas numa mesa, o prato que cada filho estendia para o pai, batendo o osso, derrubar o tutano, todos disputando ser o primeiro. Bom e longínquo tempo, em que tudo era aquele instante vivido, o futuro uma página que não se incluía na cabeça de ninguém, pensamento algum pairava sobre o amanhã. E, ali reunidos, sem saber, éramos imensamente felizes.