Agamemnon

Na mitologia grega há uma alegoria da transição do primitivo estado de solução privada dos problemas, ancorado na força bruta e na vingança, para o de estabelecimento de uma instituição responsável pela administração da justiça, com procedimentos para tanto.

O teatro grego documentou essa imagem mítica. Os três grandes dramaturgos, Ésquilo, Sófocles e Aristófanes, produziram, cada qual, a sua “Oresteia”, a trajetória de Orestes e o nascimento do primeiro tribunal. São obras do século V a.C., textos que remontam há 2500 anos, portanto, mas que, a despeito dessa datação, revelam pulsões humanas ainda perfeitamente cogitáveis.

Na versão de Ésquilo, “A Oresteia” compõe-se de três peças: “Agamemnon”, onde a primeira desforra é praticada, “Coéforas”, na qual o ciclo de violência prossegue, e “Eumênides”, onde esse fluxo encontra interrupção, finalmente.

A trama se passa na idade heroica da Grécia, por volta de 1200 a.C. O local é Argos, na península do Peloponeso. Na primeira peça dessa obra tripartida, Ésquilo narra que, depois de vencer a guerra de Tróia, o rei Agamemnon é esperado por sua esposa, Clitemnestra. Ela, no entanto, o aguarda para exercitar a vindita por um grave crime do marido cometido antes da operação bélica.

É preciso resgatar que esse drama tem começo quando Páris, pastor que depois se descobre príncipe de Tróia, foi convocado para decidir qual a mais bonita dentre as divindades, na disputa entre Hera, Afrodite e Atena. Ele escolheu Afrodite, e, como prêmio, ganhou o bônus de poder desposar a mais bela dentre as mortais. Acontece que essa mulher já tinha marido.

Enviado em missão oficial até Esparta, Páris conheceu e seduziu (ou raptou) a estonteante Helena, esposa de Menelau, rei daquela cidade. Menelau era irmão de Agamemnon, soberano de Argos. Helena, por sua vez, era irmã de Clitemnestra. Dois irmãos que se casaram com duas irmãs.

Os irmãos convocaram seus aliados para resgatar a rainha e destruir Tróia. Mas, depois de reunido o grande exército, os ventos não permitiram durante meses que os guerreiros zarpassem. Era uma reação da deusa Ártemis contra Agamemnon, que havia se vangloriado de haver caçado um cervo, comparando-se à deusa caçadora. Esse obstáculo climático gerou grandes problemas para as tropas concentradas e seus comandantes, motivo pelo qual foi consultado um oráculo. Este informou que, para apaziguar a deusa, era exigido o sacrifício de Ifigênia, filha de Agamemnon e de Clitemnestra. Só isso aplacaria as adversidades.

O rei, conquanto contrafeito, atendeu à exigência e imolou a sua filha. Isso acendeu na dilacerada mãe o desejo de desforra. Durante dez anos, Agamemnon esteve ausente, nos combates troianos. Nesse tempo, Clitemnestra teve Egisto por amante. Este personagem, por sua vez, era filho de Tieste, irmão do pai de Agamemnon, Atreu.

Egisto tinha também em si o desejo de vendeta, como desafronta pelo que sua família tinha sofrido. Atreu havia matado dois de seus irmãos, cozinhando-os e os servindo a Tieste como macabra refeição.

No retorno de Tróia, Agamemnon trouxe, como prisioneira de guerra, a profetisa Cassandra, irmã de Páris, que ele fez sua concubina. A presença dela também açulou a ira de Clitemnestra.

Pisando vitorioso no tapete púrpura, que a tradição reservava aos deuses, e tendo cometido outros graves desrespeitos contra as divindades durante a guerra, faltando com o dever de comedimento que elas impunham aos mortais, Agamemnon estava irremediavelmente condenado. Assim, pouco depois de sua chegada, quando se banhava, foi aprisionado numa rede e morto por sua esposa, a golpes de espada. O crime que ele cometera estava aparentemente purgado com o seu assassinato. Cassandra, que antevira aquele banho de sangue também foi morta. A vingança alcançara o seu êxtase.

O coro enuncia: “Baixeza vem juntar-se a mais baixezas! Julgar é tão difícil! É levado quem quer levar e quem mata é punido. Enquanto o grande Zeus mandar no mundo terá valor um mandamento seu: ‘quem for culpado há de sofrer castigo’. Que mão será capaz de remover daqui a origem de tamanhos males? A raça está atada à perdição!”

É a anunciação de mais desgraças: uma vingança chamando por outra. Então, é lembrada, já quase no arremate, a figura de Orestes, filho de Agamemnon e Clitemnestra, personagem que será central nas duas etapas seguintes dessa trilogia. A retaliação dele será o tema da próxima peça, “Coéforas”. A própria mãe será o seu alvo. Falaremos dela na próxima semana.

É preciso dizer que, no teatro grego, não há maniqueísmos e os deuses helênicos, quando citados nas narrativas, também são, eles mesmos, donos de uma personalidade que miscigena virtudes e defeitos, especialmente sob os olhos atuais. Da espada de Clitemnestra sangrando Agamemnon ao tapa de Will Smith no rosto de Chris Rock, a justiça privada e a violência se exibem como uma marca perene da imperfeição humana.

Autor

José Rollemberg Leite Neto

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