A queda

O caso é interessante e vem da Alemanha. Um gerente de vendas de uma empresa privada, em 17 de setembro de 2018, ia do quarto para o escritório, em casa, um andar abaixo, para começar a trabalhar. Ele costumava começar a trabalhar lá imediatamente, sem tomar café da manhã. Ao descer na escada em espiral que liga os ambientes, escorregou e quebrou uma vértebra torácica. A empresa de seguros sociais recusou os benefícios que foram reclamados por causa desse acidente.

Na Alemanha existe uma justiça comum, cível e penal. Existem outras, também, particularizadas por temática. Há, inclusive, um segmento judiciário especializado em seguridade social (assistência, previdência e saúde). O caso da queda da escada foi julgado pelo Segundo Senado do Tribunal Social Federal alemão (BSG), sediado em Kassel, em 8 de dezembro de 2021. A questão nele discutida era de natureza previdenciária: houve ou não um acidente de trabalho sujeito às regras de proteção do seguro social?

Na Alemanha, o seguro acidentário é feito por empresas particulares. Uma delas foi procurada pelo trabalhador acidentado, e, como visto, se negou a pagar o benefício. Ela entendeu que o infortúnio não seria de trabalho, mas doméstico. Como o empregado não concordou, buscou seus direitos judicialmente.

Fez bem. A ação para apuração de acidente de trabalho teve êxito na instância inicial, mas não na segunda. Entendeu-se nesta que a primeira rota matinal ao “home office” não é uma viagem de negócios, mas um ato preparatório não segurado. Ele apenas antecede a atividade realmente segurada. No recurso ao Tribunal Social Federal, o empregado insistiu que se tratava de um acidente de trabalho e enfatizou a importância do seu caso para a formação de um paradigma em tempos de pandemia. Reconheceu-se a sua razão.

Disse o Tribunal que se o objetivo do empregado era iniciar a jornada de trabalho, o ambiente está tão coberto pelo seguro social acidentário quanto se ele estivesse nas dependências da própria empresa. Se uma rota em “home office” é factualmente relacionada à atividade segurada, conforme demonstravam as circunstâncias objetivas do caso concreto, então deve ser reputada coberta pela proteção social.

O julgamento tem muitas especificidades: é alemão, anterior à pandemia de Covid-19, funda-se em uma legislação peculiar àquele país. É, contudo, capaz de trazer algumas reflexões, especialmente quanto à capacidade de o sistema jurídico de um determinado Estado proteger suficientemente os seus trabalhadores.

Deve-se perceber que, no momento atual, ruma-se para uma normalização do trabalho em casa, em muito forçada pela duradoura pandemia. Isso torna a antiga dicotomia espaço doméstico-rua cada vez mais difusa. As proteções jurídicas correspondentes nem sempre acompanham a velocidade da vida, ou se expressam com a clareza necessária. Veja-se o caso brasileiro.

O Brasil é dotado de alguma base normativa protetiva para situações que tais. O trabalho em casa e o teletrabalho são previstos no artigo 6º da Consolidação das Leis do Trabalho. Desde 2011, não se distingue mais esses tipos de labor daqueles realizados dentro do estabelecimento do empregador. Mais adiante, no artigo 75-E, a mesma lei diz que o empregador deverá instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho.

Dada a inexistência de distinção, a legislação previdenciária, ao definir acidente de trabalho no artigo 19 da Lei 8.213, cobre, no Brasil, uma situação como a alemã. Ocorrido o evento, tem de ser expedida a comunicação de acidente de trabalho. Caso o acidentado se afaste por mais de 15 dias, a Previdência Social pagará o auxílio correspondente. Ele fará jus, também, à estabilidade no emprego por 12 meses.

Há, todavia, um enorme senão: 40% da mão de obra brasileira não tem vínculo formal de emprego. São 38 milhões de pessoas. Muitas delas estão desprotegidas em caso de acidente, pois também não estão vinculadas à Previdência Social. Elas não se inscreveram, nem contribuem, como microempreendedores ou autônomos.

Daí que tenha sido bem-vinda, ainda que com graves insuficiências, a Lei 14.297, de 5 de janeiro de 2022, que, alcançando uma parte desses esquecidos, obriga as empresas de aplicativos de entrega a contratar seguros de acidente para os seus entregadores. Uma das falhas legais é limitação de seus efeitos ao período de pandemia (artigo 1º, parágrafo único). Os riscos desaparecerão depois dela? Uma outra é a contida no artigo 3º: o seguro é limitado ao intervalo de entrega e retirada dos produtos. Os deslocamentos antecedentes, a espera de um chamado: nada disso é declarado expressamente como integrado à operação. Muito menos uma queda em casa, a caminho da moto. Pelo jeito, o Judiciário, mesmo em “home office”, será chamado a trabalhar sobre essas questões.

Autor

José Rollemberg Leite Neto

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