A força entre as feras
Creio que nos chama atenção, ao lermos as tentações sofridas pelo Senhor no Evangelho segundo São Marcos, um dado que somente este Evangelista nos apresenta: no deserto, tentado por satanás durante quarenta dias, o Senhor vivia entre os animais selvagens (cf. Mc 1,13).
Particularmente, sempre gostei de ver o retirar-se de Jesus ao deserto, após o Seu batismo no Jordão, como um exercício espiritual do próprio Senhor. No silêncio do deserto, resplandecendo o eterno mistério trinitário e suas relações, o Filho, impulsionado pelo Espírito Santo, entra em profundo diálogo, em intensa intimidade com o Pai. Ali, naquele lugar ermo, Deus dialoga Consigo mesmo, translucidando para nós uma comunhão infindável. Ali, no mistério da Sua carne, Jesus compreende mais acerca de Sua missão salvadora. No deserto…
Também penso o deserto relacionado a nós, como mistério da nossa própria existência. Fomos enviados por Deus para o deserto deste mundo. Desde o nosso nascimento, estamos aqui para mergulhar ainda mais em Deus. Para isto, Ele nos concede o Seu Espírito Santo, que nos assiste como a filhos de Deus, porque, pelo Batismo, fomos constituídos filhos, com toda a gama que este termo e esta condição possuem.
O Espírito Santo de Deus nos sustenta como sustentou Jesus nos momentos de Sua tentação ao deserto; justamente o Espírito Santo que nos inspira clamar nos momentos de perigo: “Aba – Pai!” (Rm 8,15).
Jesus, tentado por Satanás, vivia entre as feras do deserto. Nós, tentados por Satanás, vivemos entre as feras deste mundo. Logicamente, quando digo ‘feras’, não me refiro ao sentido biológico dos animais que conhecemos, das criaturas de Deus; mas como figurativas do pecado e das tentações. “Sede sóbrios e vigiai. Vosso adversário, o demônio, anda ao redor de vós como o leão que ruge, buscando a quem devorar” (1Pd 5,8). É preciso que estejamos dóceis aos conselhos e ao discernimento doados pelo Espírito Santo, que nos conduz, deserto adentro e mundo afora, para não sermos amedrontados, molestados, tampouco devorados, pelas feras do mundo. Quando isto acontecer, quando esta sensação nos assaltar, professemos: – Deus é o Senhor de tudo. A Ele estão submissas todas as dominações, todos os poderes (cf. 1Pd 3,22). Em Cristo, o Senhor fez uma inquebrantável aliança de amor conosco. Ele é fiel: não perecerei! Sim, porque se Deus, ao fazer aliança com Noé (cf. Gn 9,11-15), promete isso (uma aliança que ainda não era plena), o que não esperarmos da promessa divina na nova e eterna aliança selada com o Sangue de Cristo?
No deserto, tentado pelo diabo, rodeado de feras, Jesus era servido pelos anjos. Deus sempre nos envia, auxiliando-nos, o Seu consolo. Não há tentação ou dificuldade em que o Senhor não nos seja favorável. Esta assistência dada pelo Alto é o que chamamos de graça, tão necessária à nossa salvação. Porque esta não é uma obra nossa; é um dom dado, mas que requer a nossa colaboração, porque, concedendo ao homem a liberdade de adesão a Ele, Deus vai realizando a Sua salvação em nós, de maneira que, somente Nele, triunfamos.
O Evangelho ainda nos diz que, preso João Batista, Jesus saiu à Galileia para pregar o Evangelho e dizer: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15). Se as linhas de São Marcos parecem apresentar que a missão de anúncio do Reino inicia-se após a saída de Jesus do deserto, após ter vencido as tentações, na vida do cristão, deserto e Galileia, tentação e testemunho do Reino acontecem simultaneamente. O mesmo mundo que nos rodeia com suas feras é o ambiente no qual devemos apresentar a nossa vida de fé e de conversão como uma proposta de Deus feita na particularidade da nossa existência, e que deu certo. A nossa experiência de fé e de conversão deve ser sinal para que tantos outros – que, como nós, estão rodeados de feras – creiam e se convertam, de maneira que, na força do Espírito, triunfem sobre o mundo, sobre o pecado. Este é o caminho que a nova Arca da Aliança, a Igreja de Cristo, dispenseira da salvação (cf. 1Pd 3,21), nos propõe sempre, principalmente pela vivência quaresmal.
Façamos da nossa voz, da nossa ação, da nossa luta, sinais de conversão e de evangelização. Também será pregão da Igreja, de quem fomos constituídos filhos e herdeiros dos bens prometidos por Deus. E assim, a conversão, a perseverança na prática do bem, a resistência diante das feras, das tentações e do diabo, não serão apenas para proveito próprio, mas, também, benefício para tantos e tantos irmãos, pois se o pecado possui uma dimensão que, espiritualmente, atinge a todos (cf. Catecismo da Igreja Católica, 408), o bem praticado, muito mais, porque é força de Deus.