“A casa e o mundo lá fora – Cartas de Paulo Freire para Nathercinha”
Outono de 1967. Paulo Freire, o mais reconhecido educador do país, está exilado com sua família no Chile. Entre afazeres intelectuais, projetos e viagens, permite-se uma brecha para registrar um tipo inusitado de alegria: a descoberta da neve. Como uma criança, descreve os flocos brancos a lhe restituírem a curiosidade e a surpresa. “A neve caindo parecia poeira no céu. E eu me senti menino de novo”. Sua interlocutora — a destinatária que, no outro lado do continente, leria essa mensagem, alguns dias depois — nunca havia visto um inverno rigoroso. Pudera: na época, não tinha mais do que 9 anos. Era, nas palavras do próprio Freire, sua amiga “mais moça”.
Entre 1967 e 1969, o pedagogo trocou correspondência com Nathercia Lacerda, a Nathercinha, sua prima de segundo grau. Décadas depois, A casa e o mundo lá fora – Cartas de Paulo Freire para Nathercinha resgata não apenas o teor dessas missivas, como também elabora uma tocante viagem pela genealogia da família e pelas memórias de uma infância marcada pela ternura.
Árduo defensor do conhecimento como arma para a autonomia, Freire elaborou seu diálogo com Nathercinha baseado no zelo, na ternura e nas saudades do lar. Busca lhe atiçar a curiosidade ao descrever as belezas e problemas de um país estrangeiro. Ao mesmo tempo, aconselha: que a menina nunca perca a graça da infância. “Vocês vão ver que a gente nunca para de estudar. Há sempre muita coisa para a gente aprender, mas a vida não pode ser só estudo. A gente também precisa brincar. Até quando a gente já está grande, como mamãe, papai, como eu que já estou ficando de barba branca, a gente precisa brincar”, recomenda, numa das cartas.
Por tudo isso, A casa e o mundo lá fora – Cartas de Paulo Freire para Nathercinha é, antes de mais nada, uma declaração de amor e de respeito ao poder da infância. Foi construído como uma espécie de mapa do tesouro, cheio de pistas sobre as direções que levam às saborosas sensações da meninice. Além das cartas de Paulo Freire — preservadas na caligrafia original, inclusive —, o livro reúne fotografias de família, relatos e lembranças, num caprichado projeto gráfico, de ares retrô. E também uma carta de Madalena Freire, filha de Paulo Freire e também educadora. Narra a efervescência da casa da família, na Urca. E mostra como os anos de Chumbo, com toda a sua opressão e obscurantismo, foram vistos pelo olhar inocente de uma menina.
Baseado em cuidadoso trabalho de pesquisa e erigido com delicadeza contundente, A casa e o mundo lá fora – Cartas de Paulo Freire para Nathercinha dá notícias de um tempo em que as relações afetivas se preservavam e cresciam na cadência acolhedora do papel — ou do jardim de casa. Uma época repleta de contradições, mas, também, de adoráveis surpresas. Como a sensação da neve caindo sobre os ombros. Como o envelope recém-chegado na caixa do correio.